terça-feira, 16 de agosto de 2011

A salvação da cultura

Simplesmente eu encontrei a solução para o problema de desinteresse que a maioria dos brasileirOs tem pela literatura.
Ao zapear pelo Yahoo a fim de conferir meus spams - é só isso que venho recebendo ultimamente, além das orações e correntes, é claro - me deparei com uma linda foto composta por algumas mulheres em roupões coloridos e a legenda ao rodapé: " Mulheres que Lêem Nuas reúnem a cada..."
Deixa pra lá o restante da legenda! Percebeu a primeira parte? Isso mesmo! "MULHERES QUE LÊEM NUAS"!... UAU! Pena que é na lingua shaekesperiana...
Imagina o potencial disso em nosso idioma patrio? Você poderia até mesmo ouvir naquelas doces vozes todas as centenas de páginas de um romance indigenista sem se preocupar na prova do vestibular, mas estará sim imaginando a própria Ceci em sua frente. Ou quem sabe Gabriela Cravo e Canela, praticamente em uma versão narrada em 3D, e ainda com a vantagem de que, por serem quatro as leitoras, pode se dar ao luxo de ignorar a antológica imagem de uma sapeca Sônia Braga a galgar degraus de uma escada rumo ao telhado de um casebre qualquer.
Logicamente por puro interesse cultural e científico, pesquisei a respeito da trupe de tão inteligentes meninas e gostei particularmente da entrevista de sua fundadora, Michelle L'Amour a um seríssimo telejornal denominado Naked News. A propósito, um ótimo trabalho da repórter Victoria Sinclair, diga-se de passagem.
Agora, colocando o machismo de lado, posso suspirar aliviado! Finalmente a cultura está salva!
Ao pesquisar na agenda do grupo, descobre que nosso país não está nos planos delas para uma visita. Pos é, nem tudo é perfeito!

Não deixe de assistir a entrevista aqui:

http://vimeo.com/20683123



quinta-feira, 11 de agosto de 2011




Hoje a tarde eu assisti a uma refilmagem de um programa que eu simplesmente amava quando era criança. Um programa que mostrava as aventuras de um garoto e seu fidelíssimo companheiro, um belo cão pastor alemão chamado Rin Tin Tin. O filme data de 2005, e diferente das histórias retratadas na antiga série não se trata da época da cavalaria, mocinhos contra peles vermelhas defendendo paliçadas de fortes americanos. O que nos é passada nesta película é a história original, com os pequenos cães encontrados em um abrigo anti-bombas alemão na França ocupada durante a Primeira Grande Guerra. A mãe e três filhotinhos sobrevivem a um ataque aéreo, assim como o folclórico casal francês que escapa de semelhante ataque se escondendo nos túneis do metrô. O nome? Rin Tin Tin e Nannette, que segundo a lenda local, viraram amuletos da sorte em forma de bonecos de crochê. Os pequenos animais são separados entre si e da mãe e o assunto se foca no nosso herói, Rinti, como é carinhosamente chamado. Como todo pastor alemão, um atleta. Ágil e esperto, inteligente e de quebra, ainda fazia uns truques bem bacanas e acompanha seu companheiro humano nas missões mais perigosas e até mesmo nas aventuras mais pitorescas.
Cruel ironia... somente esperei o filme acabar para levar a Tammy em uma consulta veterinária. Para quem não a conhece, se trata do pastor alemão mais doce e carinhoso desse mundo, que após trabalhar comigo no canil da instituição de segurança pública na qual sirvo, veio passar seus felizes últimos dias na companhia de minha família, e nisso já se vão seis anos!
Ela, como todo pastor alemão, é uma atleta. Ágil e esperta, inteligente e de quebra, faz uns truques bem bacanas mesmo. Além disso me acompanhou nas mais perigosas missões e até mesmo nas aventuras mais pitorescas, além de ser minha mais fiel confidente.
A diferença entre o herói do cinema e a heroína da vida real? Ela foi diagnosticada com uma doença terrível tanto para cães quanto para humanos... Leishmaniose, uma condenação a morte para um ser inocente e sem malícia, condenação cruel de um ser incapaz de causar mau a qualquer criatura.
mesmo após diversas picadas de injeções e vitaminas, e de sangue retirado da veia e tudo o mais, ela volta da clinica marchando ao meu lado, toda altiva e serelepe de esparadrapo no braço e tudo.
Estou sem lugar, escrevendo pra desabafar e soluçando enquanto vejo a silhueta da minha Loba passar pela porta de vidro da sala e de quando em quando dá uma paradinha e respira pelo vão de baixo dessa porta, me chamando pra brincar no quintal. Estou com um pote gigantesco de biscoito pra cachorro nas mãos e os deslizo por este espaço quando ela se aproxima pra me chamar, não, não vou abrir a porta esta noite, não tenho coragem de encarar aqueles olhinhos brilhantes que ignoram o cruel destino de sua condenação.
Já faz algum tempo eu escrevi por aqui que todos os cães vão para o céu, e quando você chegar lá, aproveita pra correr atrás daqueles carneirinhos de nuvens enquanto eu não chego. Quando a gente se encontrar novamente, vamos nos sentar na calçada do estacionamento e ficar vendo a cidade passar, como sempre fizemos aqui embaixo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Bicho Solto

_O senhor, mais do que ninguém doutor, precisa saber que eu sou sujeito homem, cabra macho mesmo, sem vacilação. Nunca gostei de patifaria e nem de esculacho. Meu papo é reto e minha conversa não faz curva, por isso repito de novo que sou sujeito homem, viu doutor? Vi muita coisa ruim lá no mundão, e isso me fez do jeito que sou hoje. A senhora minha mãe era empregada de bacana, de doutor igual ao senhor e por isso eu estudava em escola no centro, a patroa era quem pagava e até me dava o uniforme que não servia no filho dela. Mas sabe como é, né? Agora o pessoal chama de "bule", mas na minha época era escama mesmo, coro que a gente tomava depois da aula daqueles almofadinhas, gangue de mauricinhos. Pode dar o nome que quiser pra isso doutor, mas nao adianta, dói que é o cacete! E foi assim até o dia em que eu enfezei e canivetei um filhinho de papai.
Já tinha planejado tudo aqui na minha cabeça e levei roupa e chinelo e um canivete para a aula. O primeiro que me zoasse ia tomar. Podia ser qualquer um, não escolhi ninguém em especial, ele foi o promeiro, só isso. Me chamou de neguim e me deu um tapa na cabeça. Pronto! O sangue ferveu e fiquei cego. Furei as tripas do moleque e corri para o morro. Não lembro do que aconteceu muito bem não, parece sonho, só que dessa vez acordei lá na Fundação. Pobre espetar filho de rico roda mesmo, e lá eu fiquei por onze meses. Entrei aluno e saí professor. Não parava mais em casa e rapidinho já tinha formado uma turma da treta. A gente tava na atividade com tudo. Se dava pra levantar um troco tinha um irmãozinho lá na correria. De olhar carro a estourar "tochico" a gente topava de tudo. De quase tudo, quer dizer. Pois sou sujeito homem e não fazia covardia, e nem gostava que os irmãos não cumprissem a lei do crime. Caguete e patife com a gente era no pau. Sempre cumpri com a minha palavra e por isso sou considerado pela rapaziada, tá ligado?
Agora eu estou aqui, na frente do senhor, mas tô bolado de verdade com essa parada.Só que dei minha palavra e vou ter que cumprir. Lá fora no convívio eu sou bicho solto, aquilo tudo mesmo, mas aqui eu compreendo a responsa disso. Sou cabra macho sim, sujeito homem, e por isso estou com medo dessa questão, doutor.
- Se preocupa não, é um procedimento rápido e indolor, e nem preciso dizer que é necessário, não? Você está fazendo tempestade em copo de água e se não estivesse falando tanto já tinha até acabado. E além do mais, não se preocupe pois todo homem deve passar por isso quando chegar na sua idade. Precisa ter medo não.
- Eu sei doutor, sou sujeito homem, sou ramona não. Por isso é que estou com esse medo todo. Tô com um medo danado é de tomar gosto...

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Trem Bão é Coisa Boa FINAL


Parte FINAL

Sentada na escada da varanda ela observa a estrada enquanto separa a palha das espigas de milho rodeada por dezenas de galinhas que ficam por ali esperando um ou outro grão que se desprende e cai fora do cesto e que é disputado a ferozes bicadas.

-Até parece que estão passando fome, seus bichos doidos!

De um tempo pra cá ela vem sentindo muita falta do casal de jovens lá de São Paulo e fica se repreendendo: -Nunca vi isso, depois de velha a gente fica sofrendo por causa dessas bobagens...

Nisso um som bastante familiar lhe chama a atenção e ela olha a tempo de ver a antiga caminhonete de seu Joaquim fazer a curva e diminuir a velocidade até parar em frente à porteira.

-Ô de casa! Tomei a liberdade de trazer a correspondência da senhora que estava lá na caixa de correios comunitária lá na mercearia.

-Obrigada, seu Joaquim, eu nem sei quando é que ia poder dar um pulo lá pra comprar umas coisinhas de que ando precisando!

-É só a senhora me passar a listinha que mais tarde o menino trás de moto.

-Gasta agora não. Depois eu vejo direitinho o que to precisando e mando a lista pelo caminhão de leite.

Sobe a rampa conferindo a correspondência e se surpreende ao encontrar a carta com o carimbo da agência paulistana entre as contas de energia elétrica e o jornalzinho da cooperativa.

Ansiosa, rasga a lateral do envelope e puxa o papel bem dobrado. Imediatamente começa a ler a mensagem escrita em letra bem caprichosa e em papel decorado de flores.

“Oi vó, sua mais nova neta está morrendo de saudades! Como estão as coisas por aí? Aqui estamos bem, trabalhando muito, é claro, mas conseguimos uma folga na semana do feriado do dia 12 e planejamos passar esses dias aí, será que tem problema nisso? Já não estou mais agüentando o barulho da cidade. To aflita, até sonho com o cheirinho do mato e o gosto dos biscoitos.

Ah, tenho uma surpresa pra senhora! Em breve vai ter mais um mineirinho de coração pra correr atrás dos pintinhos no quintal! Esse sim vai ter uma infância completa, de bicho de pé e joelho esfolado!

Quando a gente chegar eu conto as outras novidades, to morrendo de saudades! Beijos!

Sua neta favorita.”“.

Emocionada, ela sente as pernas falharem e se senta novamente. Toma consciência do cheiro forte e adocicado das flores da jabuticabeira e do canto contínuo e sibilante das cigarras.

– Vão chegar na época certa! Vou ensinar minha neta a fazer aquela geléia caseira!

O sol avermelhado começa a se esconder entre as árvores no horizonte criando longas e tristes sombras.

-Essa é uma das horas mais bonitas do dia. Lusco fusco? Por do sol? Ocaso? Qual a melhor maneira de chamar o poético momento?

_Aurora?

–Não, aurora é de manhã, uai!

–Aurora?

Ela se vira na direção da voz e divisa entre os fulgurantes raios de sol uma imagem esmaecida que aos poucos vai ganhando nitidez. Tal visão lhe tira o fôlego. O que antes era apenas uma sombra disforme se transforma em um cavaleiro trazendo aos cabrestos nobre corcel.

_Meu Deus! Exclama ao perceber que a presença ali era a de seu velho, conduzindo a fiel Bailarina, sorrindo e lhe estendendo a mão.

_Aurora, Aurora minha velha, já pode vir comigo. Nossa missão aqui já foi cumprida. Essa boa herança que carregamos por toda uma vida não vai mais ser perdida. Agora chegou a hora de descansar...

FIM

Trem Bão é Coisa Boa Parte Treze


Parte TREZE

Um novo dia nasce na roça e todos se levantam com as galinhas. Estão esperando o caminhão de leite que hoje está trazendo sacos de farelo e medicamentos para o gado.

Durante a manhã fria conversam em volta do fogão aceso tomando café e comendo o queijo Minas acabado de sair da forma. Em breve, Chicão chegará do curral com o latão de leite que dessa vez não se tornaria queijo e sim, o cremoso e famoso doce que o casal levaria para casa, junto com algumas dúzias de ovos, café moído, mel de jataí que a própria moça colhera na cabaça e é claro, alguma quitanda.

O tacho já estava pronto e o fogo aceso lá fora no fogareiro de chão ao lado do forno de biscoitos.

Enquanto o trabalho demorado de virar o doce de leite era executado, o rapaz foi apanhar as doces laranjas campistas e as azedas laranjas capeta, algumas pimentas e uma lembrança da infância: castanhas de buriti.

Hoje ele faria o almoço e se atirou à cozinha. Encontrou alguns enlatados no grande armário de madeira e caprichou no arroz de forno, e aproveitou a lingüiça que defumava no jirau para dar um sabor todo especial ao feijão tropeiro. Não podia faltar, é claro, uma tradicional sobremesa mineira a base de queijo e goiabada, famosa Romeu e Julieta, a qual dera um toque especial acrescentando a mistura um pouco de requeijão cremoso.

A euforia dos dias anteriores aos poucos ia sendo substituída por um sentimento de saudade de algo que ainda não tinham perdido, sentimento confuso e de difícil explicação mas que doía uma pontadinha aguda, lá no fundo do estômago.

As malas já estavam prontas e o que não era essencial já estava até mesmo no porta-malas do carro. Amanhã era a partida e este era um assunto que estava sendo evitado.

Enquanto o doce esfria o trabalho continua. Aproveitando a lenha que o rapaz havia juntado para o preparo do doce e que sobrara, anfitriã e visitante resolvem preparar uma fornada de pães de queijo e vão sovar o polvilho.

Nesse tempo ele vai deixando o veículo pronto para a partida, verificando óleo e água e carregando o GPS com os dados da viagem.

A moça vai ao delírio ao experimentar o pãozinho ainda quente com uma fatia de queijo fresco em seu interior, que derrete imediatamente e só quem já experimentou conhece tal iguaria.

Tudo pronto para a partida na manhã seguinte, eles passam o resto do dia e uma boa parte da noite fazendo planos para um retorno e até mesmo quem sabe, uma viagem da avó até São Paulo?

O último dia amanhece e começam as despedidas. Com lágrimas nos olhos a garota abraça a senhora e pergunta se pode chamá-la de vó. Esta, muito emocionada sorri e lhe pede que traga rapidamente alguns bisnetos para trazer de volta a alegria até a antiga casa de fazenda.

Com um rápido toque na buzina o rapaz põe termo na despedida e acena à avó, que assiste com um nó na garganta o carro desaparecendo na curva à esquerda.

-É Barranco, agora somos só nós dois de novo. Vem cá nego, esquentar sol com essa velha, vem!

Fim da Parte TREZE

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte DOZE


Parte DOZE

Hoje de manhã o quadro se inverteu. A garota levantou cedo e aprendeu a acender o fogão a lenha e a lavar os queijos que eram desenformados. Descobriu os ninhos das galinhas em meio o capim no quintal e assistiu à ordenha ao som das modas de viola que crepitavam do velho rádio de caixa de madeira instalado entre as tábuas do curral. Enquanto arriscava a passar o café pelo coador de pano dependurado no tripé de arame o rapaz continuava no quarto. Levantou um par de vezes durante a madrugada e agora estava brigado com o sol se mantendo escondido na penumbra do quarto. A cabeça latejava com força para lembra-lo que fazia tempo deixara aquele ambiente e se quisesse aproveitar de tudo que ali lhe era oferecido, teria que começar aos poucos, especialmente quando se tratasse da forte cachaça produzida pelo caseiro da avó.

Aos poucos ia pegando intimidade com as coisas da roça. Perguntava sobre os utensílios da cozinha. O que era aquilo e como funcionava? Surpreendeu-se ao saber que o estranho objeto esférico com uma pequena janela e a manivela comprida dependurado na parede era o torrador de grãos que preparou o pó do delicioso café que estava tomando ali. O fruto maduro era colhido lá mesmo no quintal e depois de seco e torrado era moído na hora do preparo, o que dava um sabor todo especial, sem falar no aroma forte e pungente que dominava o ambiente na parte da manhã. Ficou sabendo das histórias de infância do namorado, das brincadeiras e aventuras vividas no lugar e percebeu que havia em si um vazio que nunca seria preenchido. Uma infância onde teve de tudo que o dinheiro poderia pagar. Melhores escolas, colônias de férias, piano e balé.

Agora aquilo tudo parecia tão artificial que chegou até mesmo a sentir saudades de um passado que não teve, um passado de pés no chão, de contato com a terra. Correr no campo em meio às árvores e bichos no quintal, molhando os pés na bica e colhendo as laranjas praticamente através da janela do quarto.

A partir deste momento começa a compreender a ligação do povo com aqueles elementos. Era algo muito mais forte do que uma relação proprietário e propriedade. Era algo quase que espiritual, uma troca de energia que o rapaz chama de mineiridade.

A velha senhora sorria satisfeita. Sabia que cedo ou tarde conseguiria conquistar o coração da garota outrora mimada e que aos poucos se entregou à simplicidade do lugar e do povo, afinal, é impossível resistir a toda essa simpatia e carisma.

Estava até mesmo recebendo alguma ajuda ali no serviço da cozinha e no preparo dos queijos. Na verdade não era bem uma ajuda, podia chamar era de boa vontade. Às vezes a moça até atrapalhava, mas não chegou a dizer nada. Agora que ela animou a deixar da caverna em que se escondia e dar o ar da graça não iria constrange-la com alguns pequenos detalhes. Ela parecia realmente feliz manipulando os queijos sob a água corrente ou girando o moedor de café após quase perder o fôlego soprando o braseiro mortiço para atiças as labaredas no fogão a lenha.

Ele criou coragem para sair do quarto e antes sequer de cumprimentar as mulheres que trabalhavam panelas e temperos na alquimia da cozinha, desceu os degraus de pedra e foi colher algumas laranjas-capeta a fim de fazer um suco gelado capaz de curar a ressaca mais infame e devastadora de todas.

Ficou alegre ao notar a companheira entretida com as tarefas domésticas e comeu satisfeito o prato que ela fez questão de servir, frisando que tivera importante participação no preparo do almoço mineiríssimo: tutu de feijão, couve, arroz e lingüiça e uma salada de tomate com pepino e cebola temperada somente com sal, vinagre e pimenta-do-reino.

Ela não pára de falar sobre a descoberta da cozinha simples e saborosa e que, quando voltar para casa fará uma festa temática com direito a trens e uais.

Avó e neto trocam um olhar de cumplicidade, sabiam que uma hora ou outra ela entregaria os pontos e deixaria de lado aquele pré-conceito com o qual viera armada da cidade grande e se deixaria levar pelo clima e boa energia do lugar.

-Trem bão é coisa boa mesmo! Ela exclama após saborear um belo naco de lingüiça e dispara a rir.

Barriga cheia e a calma do campo, ingredientes perfeitos para o cochilo vespertino, e elas vão curtir a sesta nos seus quartos enquanto ele, que havia levantado da cama tarde, passa a mão em um facão e se dirige até a touceira de bambu próxima à bica d’água. Estuda pacientemente as esguias hastes calculando seu comprimento e testando a flexibilidade. Definido o alvo, vibra a lâmina com precisão e corta a vara rente ao chão. Contente com a escolha, estala a ponta do caniço no ar e toma a trilha de volta a casa onde as mulheres descansam tranqüilamente.

Esse ritual ele conhece bem. Limpa a varinha de bambu e amarra a linha de nylon, escolhe o anzol adequado e a pequena chumbada. Com uma enxada e uma velha latinha de massa de tomate em mãos, rapidamente recolhe um bom número de minhocas para o evento da tardinha.

Enquanto a avó e a namorada se dedicam ao preparo da janta, ele pega um balde de estanho e se encaminha ao Corguinho com sua tralha de pesca.

Isca o anzol e não demora muito fisga um acará – Nossa! Tanto tempo sem pescar e o primeiro é justamente um acará! Eu mereço! – Mas o esforço, se é que tal atividade possa ser chamada dessa forma, vale a pena! Em pouco tempo ele tem nadando em seu balde cinco ou seis bagres e duas traíras de bom tamanho. – Elas podem até jantar uma caprichada macarronada com ovos cozidos, mas vão me desculpar... Hoje eu mereço uma bela fritada desses peixinhos.

Dessa forma, mais um dia no campo se acaba, e passa tão rapidamente que os visitantes já começam a planejar um retorno em breve para poderem aproveitar dos benefícios do campo de todas as formas possíveis, afinal de contas, a semana já estava indo para o seu final e na velocidade na qual os dias transcorriam, em um piscar de olhos já estariam de volta à correria da cidade e à escravidão do relógio.

Fim da Parte DOZE

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte ONZE

Parte ONZE


Acordou sentindo uma angústia inexplicável. Um peso no peito, quase uma falta de ar. Aos poucos ela vai entendendo os sintomas. Longe de casa, num lugar estranho, escuridão e silêncio total. Sente falta dos sons da cidade grande, das luzes intermitentes das viaturas lá embaixo, e ela protegida da violenta realidade por mais de uma dezena de andares, na sua bolha protetora, apartamento hermético que a isola do mundo. Escolhe seus contatos, e os escolhe a dedo. Amigos, amores e até mesmo familiares, só se envolve com quem bem quer.

E agora aquela nova situação se impõe. Fora de seu ambiente tão bem controlado, está na casa de pessoas estranhas que se aproximam e se dão liberdades e intimidades tão naturalmente que a deixam perplexa. Aquilo incomoda profundamente e a primeira noite ali só serviu para aumentar tal sensação.

Consegue se entregar ao sono somente com o início da alvorada, quando um estreito facho de luar se filtra pelas frestas da janela formando um tênue quadrado luminoso na parede antes imperceptível na densa escuridão da noite do campo.

Diante de tal imagem, aos poucos se entrega ao sono novamente e nem percebe o rapaz se levantando com toda a disposição do mundo para encarar o dia que estava começando.

Uma diáfana neblina ainda se despregava do capim no pasto à frente quando o rapaz enfiou a cabeça sob a torneira da pia e sentiu todos os músculos do seu corpo se retesando ao contato da água gelada da cisterna. Se estivesse na cidade, certamente estaria dormindo àquela hora, e acordaria bem mais tarde. Mais duas, três horas de sono ainda, quem sabe?

Mas na roça era impossível permanecer deitado, ainda mais agora que era quando as coisas começavam a acontecer. A estrada que durante o dia ficava praticamente deserta agora se apinhava de trabalhadores indo para as plantações de milho e pimentão, além de algumas carroças levando adultos e ás vezes até mesmo crianças até as capineiras onde passariam o dia cortando a baquearia para alimentar o gado nos cochos.

A avó já havia se levantado fazia tempo. Passou o café com rapadura e lhe serviu uma fatia de queijo bem fresco, recém tirado da fôrma. Ele mesmo foi quem lavou a peça usando para isso um sabugo de milho a fim de retirar o excesso de sal que o cobria, ao mesmo tempo em que era apresentado a Chicão, o caseiro que iria acompanhar até o curral para assistir à ordenha de uma meia dúzia de vacas daquelas bem ordinárias que nem perto passam das campeãs de produção leiteira que estava acostumado a ver nas exposições de gado, mas que eram mais que suficientes para a fabricação dos queijos que ajudavam a complementar a magra pensão com que a proprietária administrava o terreno.

Juntamente com Barranco, ele acompanha Chicão que leva um pedaço de corda, um balde e um pequeno banco, os instrumentos necessários para a conclusão da tarefa. Nas suas próprias mãos vai uma caneca de zinco esmaltado e que pelas marcas de descascado que ostenta, está ali desde sua infância.

Ao contrário das grandes fazendas nas quais o processo se dá de forma totalmente mecanizada, naquela propriedade tudo acontece da maneira tradicional. O caseiro amarra as patas traseiras da vaca e enquanto se senta no banquinho posiciona o balde e começa o trabalho de ordenha manual. É mais demorado e menos eficiente, mas de que outra maneira ele conseguiria encher a caneca com leite quente tirado na hora, e ainda rir frouxamente lembrando do bigode formado pela espuma, igualzinho ao que fazia quando era ainda um meninote?

Graças à habilidade de Chicão rapidamente se tem pouco mais de meia lata de leite, que é levada até a varanda dos fundos da casa, onde se adiciona o coalho para o início do processo de fabricação dos queijos que no final de semana serão comercializados no armazém do povoado ali perto.

Agora os dois vão tocando o pequeno rebanho estrada a fora acompanhados pelo fiel Barranco ao local onde as vacas permanecerão pastando até à tardinha, quando Chicão fará o trajeto inverso e trará o gado para dormir no curral próximo à casa. Para o caseiro, a caminhada que dura cerca de meia hora é um trabalho corriqueiro, já para o jovem investidor é uma verdadeira aventura cheia de sobressaltos, com direito até mesmo de correr no mato em meio a pontiagudos espinheiros no encalço desta ou daquela novilha desgarrada.

Já são dez horas, minha filha! Exclama a senhora ao encontrar com a garota no meio da sala, e nem pôde conter o riso ao perceber que a visitante vestia um longo roupão rosa claro e trazia nas mãos uma bolsa transparente com dezenas de produtos de beleza e higiene, além de no mínimo, umas três toalhas.

-Pra que tudo isso meu Deus? No meu tempo a gente se virava com uma barra de sabão de coco e saco de açúcar. E eu que achei que tava moderna demais comprando sabonete cheiroso e agora vejo você parecendo prateleira de botica! Se ta com isso tudo pra ficar aqui na roça quero nem ver quando for casar com o meu neto! Hahahahahaha!

E rindo com vontade, deixou a garota ir para o banho com um tímido – A gente precisa estar preparada para tudo, não é mesmo?

Agora que estava de banho tomado e energias renovadas, se junta à anfitriã que amarrava um feixe de plantas ao lado de uma curiosa construção abobadada erigida a um canto do quintal.

Ao perceber sua chegada a dona de casa lhe sorri e pergunta se poderia fazer um favor, momento no qual pensa muito a contragosto, que além de estar onde não queria conseguiu até mesmo arrumar um serviço para fazer. –Aff, deveria ter ficado no quarto lendo o livro como fiz ontem... Que será que será que vai me sobrar agora?

-Pega essa vassourinha e passa ela no forno, por favor?

Bom, isso ela poderia fazer. Mas olhou em volta e não viu nem vassoura nem forno.

Percebendo o embaraço, a velha aponta o feixe de ramos que acabara de atar e a estrutura arredondada feita de tijolos aparentes e entendeu tudo. Ficou admirada com o aroma que as folhas emanavam enquanto limpava as cinzas e pedaços de carvão de dentro do forno a lenha, e soube que os ramos eram de alecrim, mas não aquele de supermercado, tempero de vidrinho. Era alecrim do mato. Tempero de verdade mesmo. E não é que era mesmo bom?

Olhou um pouco preocupada para o relógio, pois já sentia os primeiros sinais de fome e perguntou se a preparação do tal forno seria para o almoço.

-Né não, menina. O almoço já ta é pronto, sopa de mulher parida que eu fiz enquanto você ainda dormia. Dizendo isso, apontou para cima e ela pôde ver os rolos de fumaça se desprendendo da chaminé da cozinha e flutuando até se desfazerem na brisa da manhã que se acabava. O forno é para as quitandas, afinal, hoje é terça-feira, dia de rezar o terço e hoje vai ser aqui em casa.

Ela já havia ouvido sobre as famosas quitandas mineiras, mas essa tal sopa de mulher parida? –Sei lá se vou comer isso não, ainda bem que trouxe umas barras de cereal – pensa enquanto tenta imaginar que prato bizarro seria este que lhe seria apresentado à hora do almoço.

-Bora almoçar, Chicão.

-Vou não, patrão, tenho que ficar aqui na Capoeira pra curar a criação e quem sabe pegar um ou dois preás pra comer tomando uma guia mais tarde, né? Além disso, to com a marmita que a dona fez, se voltar com ela cheia arrumo problema certo.

-Só você mesmo! Então vou chegando que se ficar aqui mais dez minutos vou ter que cair ali no pasto e comer capim junto com as vacas.

Passa a tronqueira que separa o terreno da família da estrada de terra e começa a caminhada até a sede cerca de três quilômetros serra abaixo, mas não sem antes parar para colher algumas laranjas campistas que nasciam naturalmente ali no pasto. Mais uma doce lembrança de sua infância. Doce mesmo. Ao observar a árvore nota que os frutos mais altos estão bicados pelos pássaros, sinal de que as laranjas estão deliciosamente maduras e no ponto exato de se colher.

Descendo a sinuosa estrada vai lembrando de quando subia acompanhando o pai e o avô, ora correndo para tentar acompanhar os largos passos dos adultos, ora sentado atrás do carro de bois que ia rangendo as grandes rodas de madeira enquanto ficava riscando com a varinha de bambu o chão que corria para trás sob seus pés ouvindo o condutor chamando os bois carreiros e bater a vara de ferrão na cangalha: Eia Apache! Eia Cigano!

Absorto em tais pensamentos nem percebeu que já saltava o último dos mata-burros e conseguia avistar no alto da pequena colina depois da curva a aconchegante casinha de pau a pique. Ao ver a fumarola se elevando do telhado da cozinha sentiu a boca se encher de água e apertou o passo.

-Hoje eu como até ficar triste!

Ele quase nem acreditou quando entrou na cozinha com o prato na mão. Na panela de ferro borbulhava o caldo da galinha, feita em sua própria gordura, o que dá um sabor todo especial. Em outra, o quiabo sequinho, que só quem tem grande experiência na cozinha mineira consegue fazer. Forra o prato fundo com farinha de milho e deita o caldo, não sem antes pescar o coração, lembrando de uma traquinagem de criança, quando ele e os primos disputavam tal guloseima praticamente a tapas.

Enquanto isso a avó explica à moça que o prato se chama sopa de mulher parida porque antigamente era preparado para as mulheres que davam a luz, de forma a lhes dar força e resistência e se recuperarem após o trabalho de parto.

O rapaz enche a colher com gosto e vontade – Nem lembro quantos anos fazem que eu não como uma comida mineira de verdade. Já estava enjoado dos magros caldos temperados na base de pozinhos e tabletes. Faltou só o ora pro nobis, que seria um acompanhamento perfeito, mas este foi prometido para a próxima visita.

A garota, que não gostou do prato já ao ouvir o nome ficou surpreendida com o sabor e textura. Comeu e repetiu. Além disso, prometeu se aprofundar na história da culinária da região e seus nomes peculiares. –Já que estou aqui, melhor mergulhar na tradição. Se estou em Roma...

Para a idosa, não teve noticia melhor. Adorava falar das historias e estórias locais, lendas e folclores, e agora ganhou uma ávida ouvinte, curiosa pra absorver toda aquela prosa matuta. Enquanto tirava fornadas de biscoito e bolos de fubá com queijo, falava sobre a misteriosa luz que aparece por ali às margens da estrada e que acompanha os incautos pedestres que caminham sozinhos pela noite. Ela mesma nunca viu, mas já deu abrigo a apavorados transeuntes que juram ter sido perseguidos pela fantasmagórica chama, especialmente durante a semana santa. A garota se divertia com a narrativa, cheia de gestos e sons que davam ainda mais ênfase ao conto e quase sem perceber, foi abrindo a guarda ante a simpatia contagiante da simples anfitriã.

A tarde correu rápida e a mesa estava farta com os biscoitos de queijo e canela, além de diversos bolos, café de rapadura e leite caramelado, tudo isso para receber as comadres e os compadres no ritual semanal de rezar o Rosário, tradição e cultura que permanece arraigada profundamente entre os moradores do povoado.

Com o cair da noite, a casa vai se enchendo e o papo fica alegre com os causos que todos contavam, até que começa o momento da oração em que a fé se sobrepõe à confraternização e se entregam às contas dos terços elevando as vozes em uma ladainha monótona, quase um mantra, quando parecem entrar em um estado de hipnose e nada mais importa além de cantar as orações ritmicamente.

Encerrado o rosário, novamente a casa se ilumina de vozes e começa o banquete. Alguém levou um caldo de feijão e outro um de mandioca. Chicão chama o rapaz e lhe apresenta a cachaça que fabrica no pequeno alambique que tem no terreiro de casa. Mais alguns homens se juntam e formam uma pequena rodinha de degustação, tirando gosto com caldo e torresmo. Não gasta muito tempo e ele já está embriagado pela forte bebida, desacostumado e até um pouco empolgado foi um pouco além da conta e do limite. Nesse instante percebe o olhar de desaprovação da companheira, larga os companheiros de copo e a abraça pela cintura.

-É melhor dar uma maneirada, sei que está se encontrando com suas raízes, mas não significa que precisa me deixar envergonhada.

Assim como foram chegando, os participantes se retiram e a casa volta à sua calma costumeira. Desacostumada a deitar tarde, a dona se arrasta para a cama e o casal também se recolhe. Excitada com o dia cheio de acontecimentos e novidades, a garota começa a falar sobre as descobertas, o forno e as quitandas, os causos que ouviu e a simpatia que começava a nutrir pelo povo simples do lugar, a comida tradicional e os temperos colhidos ali mesmo, bastando somente dar uns poucos passos até a hortinha que era cultivada no quintal, com pimentas, hortelã, cebolinha e manjericão, além de outras ervas aromáticas.

Tão empolgada que estava, nem percebeu que ao invés de ouvi-la, o rapaz havia dormido assim que tocou os travesseiros. Embalado pelas atividades do dia e pelas cachaças da noite, já sonhava com o verde capim dos pastos e o marrom avermelhado dos cupinzeiros que cresciam aqui e acolá entre as trilhas pisadas pelas vacas no pasto.


Fim da Parte ONZE