quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte DOZE


Parte DOZE

Hoje de manhã o quadro se inverteu. A garota levantou cedo e aprendeu a acender o fogão a lenha e a lavar os queijos que eram desenformados. Descobriu os ninhos das galinhas em meio o capim no quintal e assistiu à ordenha ao som das modas de viola que crepitavam do velho rádio de caixa de madeira instalado entre as tábuas do curral. Enquanto arriscava a passar o café pelo coador de pano dependurado no tripé de arame o rapaz continuava no quarto. Levantou um par de vezes durante a madrugada e agora estava brigado com o sol se mantendo escondido na penumbra do quarto. A cabeça latejava com força para lembra-lo que fazia tempo deixara aquele ambiente e se quisesse aproveitar de tudo que ali lhe era oferecido, teria que começar aos poucos, especialmente quando se tratasse da forte cachaça produzida pelo caseiro da avó.

Aos poucos ia pegando intimidade com as coisas da roça. Perguntava sobre os utensílios da cozinha. O que era aquilo e como funcionava? Surpreendeu-se ao saber que o estranho objeto esférico com uma pequena janela e a manivela comprida dependurado na parede era o torrador de grãos que preparou o pó do delicioso café que estava tomando ali. O fruto maduro era colhido lá mesmo no quintal e depois de seco e torrado era moído na hora do preparo, o que dava um sabor todo especial, sem falar no aroma forte e pungente que dominava o ambiente na parte da manhã. Ficou sabendo das histórias de infância do namorado, das brincadeiras e aventuras vividas no lugar e percebeu que havia em si um vazio que nunca seria preenchido. Uma infância onde teve de tudo que o dinheiro poderia pagar. Melhores escolas, colônias de férias, piano e balé.

Agora aquilo tudo parecia tão artificial que chegou até mesmo a sentir saudades de um passado que não teve, um passado de pés no chão, de contato com a terra. Correr no campo em meio às árvores e bichos no quintal, molhando os pés na bica e colhendo as laranjas praticamente através da janela do quarto.

A partir deste momento começa a compreender a ligação do povo com aqueles elementos. Era algo muito mais forte do que uma relação proprietário e propriedade. Era algo quase que espiritual, uma troca de energia que o rapaz chama de mineiridade.

A velha senhora sorria satisfeita. Sabia que cedo ou tarde conseguiria conquistar o coração da garota outrora mimada e que aos poucos se entregou à simplicidade do lugar e do povo, afinal, é impossível resistir a toda essa simpatia e carisma.

Estava até mesmo recebendo alguma ajuda ali no serviço da cozinha e no preparo dos queijos. Na verdade não era bem uma ajuda, podia chamar era de boa vontade. Às vezes a moça até atrapalhava, mas não chegou a dizer nada. Agora que ela animou a deixar da caverna em que se escondia e dar o ar da graça não iria constrange-la com alguns pequenos detalhes. Ela parecia realmente feliz manipulando os queijos sob a água corrente ou girando o moedor de café após quase perder o fôlego soprando o braseiro mortiço para atiças as labaredas no fogão a lenha.

Ele criou coragem para sair do quarto e antes sequer de cumprimentar as mulheres que trabalhavam panelas e temperos na alquimia da cozinha, desceu os degraus de pedra e foi colher algumas laranjas-capeta a fim de fazer um suco gelado capaz de curar a ressaca mais infame e devastadora de todas.

Ficou alegre ao notar a companheira entretida com as tarefas domésticas e comeu satisfeito o prato que ela fez questão de servir, frisando que tivera importante participação no preparo do almoço mineiríssimo: tutu de feijão, couve, arroz e lingüiça e uma salada de tomate com pepino e cebola temperada somente com sal, vinagre e pimenta-do-reino.

Ela não pára de falar sobre a descoberta da cozinha simples e saborosa e que, quando voltar para casa fará uma festa temática com direito a trens e uais.

Avó e neto trocam um olhar de cumplicidade, sabiam que uma hora ou outra ela entregaria os pontos e deixaria de lado aquele pré-conceito com o qual viera armada da cidade grande e se deixaria levar pelo clima e boa energia do lugar.

-Trem bão é coisa boa mesmo! Ela exclama após saborear um belo naco de lingüiça e dispara a rir.

Barriga cheia e a calma do campo, ingredientes perfeitos para o cochilo vespertino, e elas vão curtir a sesta nos seus quartos enquanto ele, que havia levantado da cama tarde, passa a mão em um facão e se dirige até a touceira de bambu próxima à bica d’água. Estuda pacientemente as esguias hastes calculando seu comprimento e testando a flexibilidade. Definido o alvo, vibra a lâmina com precisão e corta a vara rente ao chão. Contente com a escolha, estala a ponta do caniço no ar e toma a trilha de volta a casa onde as mulheres descansam tranqüilamente.

Esse ritual ele conhece bem. Limpa a varinha de bambu e amarra a linha de nylon, escolhe o anzol adequado e a pequena chumbada. Com uma enxada e uma velha latinha de massa de tomate em mãos, rapidamente recolhe um bom número de minhocas para o evento da tardinha.

Enquanto a avó e a namorada se dedicam ao preparo da janta, ele pega um balde de estanho e se encaminha ao Corguinho com sua tralha de pesca.

Isca o anzol e não demora muito fisga um acará – Nossa! Tanto tempo sem pescar e o primeiro é justamente um acará! Eu mereço! – Mas o esforço, se é que tal atividade possa ser chamada dessa forma, vale a pena! Em pouco tempo ele tem nadando em seu balde cinco ou seis bagres e duas traíras de bom tamanho. – Elas podem até jantar uma caprichada macarronada com ovos cozidos, mas vão me desculpar... Hoje eu mereço uma bela fritada desses peixinhos.

Dessa forma, mais um dia no campo se acaba, e passa tão rapidamente que os visitantes já começam a planejar um retorno em breve para poderem aproveitar dos benefícios do campo de todas as formas possíveis, afinal de contas, a semana já estava indo para o seu final e na velocidade na qual os dias transcorriam, em um piscar de olhos já estariam de volta à correria da cidade e à escravidão do relógio.

Fim da Parte DOZE

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