sábado, 30 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte Dez


A tarde desenrolou sem surpresas, papo jogado fora, conversa colocada em dia.

O rapaz contava para a avó o sucesso do trabalho, a escada galgada para chegar até ali e os planos para o futuro.

A velhinha o punha a par das mudanças ocorridas ali, as coisas que eram produzidas, quantas vacas, porcos e galinhas compunham seu plantel.

A moça assistia a tudo de longe tentando entender o gosto daqueles dois por aquele pedaço de chão longe da civilização, cercado de mata por todos os lados e praticamente sem comunicação com o resto do mundo. A primeira coisa que fez quando chegara ali fora tirar o celular da bolsa para anunciar as amigas sobre o termo da viagem e lhes contar as primeiras impressões sobre o local. E a primeira impressão para ela não foi nada agradável.

Em qualquer lugar que fosse não conseguia sinal nenhum e isso lhe causava uma certa ansiedade. Melhor mesmo foi se deitar um pouco, descansar das horas de asfalto e cascalho para dar uma melhorada no humor que aos poucos teimava em se degradar. Com a cabeça um pouco mais fresca sentou-se no antigo banco de madeira junto à cerca e se pôs a ler um grosso livro que levou já com a intenção de se distrair nos tediosos dias que teria que passar na presença da família do companheiro.

- Pelo menos com isso em mãos não preciso dar muito assunto a ninguém, fico na minha e ainda passo o tempo sem nem perceber os mosquitos e baratas que devem existir aos montes por aqui, credo!

A janta simples foi servida as cinco da tarde e a dona da casa começou a se recolher logo após a Hora do Ângelus, momento para ela e também para a grande maioria dos moradores daquelas bandas, era o mais solene do dia. O sol se põe cedo na roça e assistir a este espetáculo da natureza ouvindo a Ave Maria de Gounod chega mesmo a ser emocionante.

-Deus os abençoe meus netos, essa velha já vai é pra cama, afinal a lida começa cedinho. Boa noite e durmam bem porque amanha o dia vai ser muito assoberbado.

Dizendo isso passou as tramelas nas portas e os trincos nas janelas, pegou o terço gasto entre os dedos e foi para o quarto.

O jovem casal segue seu exemplo e se fecha no aposento onde ao se apagar as luzes, não conseguem ver absolutamente nada além do mais profundo negrume.

Fim da Parte DEZ

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Direto de 1993

Meus amigos, estava procurando localizar um documento e encontrei este texto datilografado em amarelada folha A4. Foi na verdade uma redação para a escola e na época fiquei decepcionado em não ter tido a oportunidade de ler em frente à classe.
Mesmo assim, correndo risco de me expor ao ridículo, postarei agora tal texto na íntegra. (estou preparado para o bulling literário)

Sexta-feira, mais ou menos vinte e uma horas. Como sempre, estávamos (eu e os amigos mais íntimos) no ponto da cidade mais badalado pela juventude, esperando aparecer alguma aprontação como festa, viagem, uma menina pra beijar, coisas desse tipo.
Na esquina a uns quarenta metros a gente estava um rapaz aparentando ter seus dezessete, dezoito anos, de olhar triste e cabisbaixo. Uma de suas mãos segurava um copo de bebida, talvez um Campari, e a outra mantinha escondida no bolso em vã tentativa de se proteger do frio intenso que fazia. Ele nos olhava como quem tinha inveja da alegria e animação que emanava de nossa turma reunida.
Cara estranho! Parece doido! - esse era o comentário geral das pessoas que estavam a nossa volta. Procuramos ver de onde partiam tais impressões e quando olhamos ao redor, ele já não estava mais lá. Ia ao largo cabisbaixo e com as mãos nos bolsos.
Chega o sábado! Dia de folia! mil e um agitos, de todos os cantos se ouve música, risos, piadas e brincadeiras, e naquele mesmo lugar, ali estava ele, o rapaz solitário. Parecia que a alegria dos frequentadores do lugar servia apenas para aumentar sua tristeza.
Um dos integrantes de nossa turma o convidou a participar com a gente. Ele fez um sinal com as mãos que parecia ser um sim e veio interagir conosco.
Papo vai, papo vem, as horas foram passando e quando dei por mim a madrugada ia alta e estávamos somente os dois conversando. Ele foi aos poucos se desinibindo e contando a sua triste história de vida que é mais ou menos assim:
Após a separação dos pais, ele se vê em uma grande crise depressiva que fora agravada ainda mais pelas brigas que a mãe e os irmãos travavam constantemente consigo por não compreenderem sua condição. Graças a isso tomara então uma atitude que depois reconhecera precipitada, ao vender tudo o que tinha. Seu video game, a bicicleta e alguns livros que lhe eram caros. Assim arrecadou algum dinheiro, além de retirar um fundo que tinha na poupança e resolveu sair de casa. Por algum golpe do destino ele veio parar aqui em nossa cidade, mas como não conseguiu arranjar trabalho o dinheiro estava se acabando, e ele já não mais sabia o que fazer.
Passado algum tempo nos tornamos grandes amigos e paulatinamente ele ia melhorando o quadro.
Talvez por ciúmes de nossa amizade, não sei ao cero, só sei que meus outrora amigos foram se afastando de mim até chegar ao ponto em que não havia ninguém a quem pudesse contar para conversar, tampouco para confiar a não ser, é claro, com o meu novo colega.
Não sei como puderam localizá-lo, quem sabe pelas emissões dos cheques, mas ele recebeu triste notícia originária de sua família.
A irmã mais nova andava muito adoentada e queria vê-lo. Ninguém sabia estipular um prazo , só se sabia que este seria bem curto, mas como ele não tinha mais dinheiro nem recursos para voltar a sua casa e o orgulho besta não lhe permitiria receber qualquer ajuda, inclusive a minha, voltou a ficar depressivo, triste e cabisbaixo, como eu o havia conhecido, mas dessa vez o desespero o levou a medidas mais extremas.
Fiquei sabendo da notícia no colégio: Enforcado, sepultamento as dezesseis horas dessa quarta-feira, em cova rasa, cerimônia simples, quase como um indigente.
Corri aqui e ali, e consegui levantar algum dinheiro em casa somente para ele não ficar completamente esquecido entre tantas lápides impessoais, brancas e frias...
Enquanto a urna funerária de compensado barato desaparecia lentamente sepulcro adentro eu recebia os votos de pêsames e sentimentos que partiam de meus falsos amigos e lia o que havia mandado escrever na placa que eternamente cobriria seu corpo inerte:
Conforme Rabindranath Tagore disse: "O carimbo da morte é que dá seu valor à moeda da vida, e torna capaz de comprar o que tem valor real." Emocionado, acrescentei entre dentes: A verdadeira amizade!
Descanse em paz, meu grande amigo!



Trem Bão é Coisa Boa Parte Nove


Parte NOVE

Toda orgulhosa de sua arte culinária a boa senhora coloca a comida à mesa e vai anunciando os pratos aos comensais.

_Meus filhos, não fiz nada de mais hoje não, só um comer simples, repara não, ta?

Mais para a semana eu prometo que capricho, hoje vocês vão ter que se agüentar com arroz, feijão batidinho (faz questão de dizer que foi feito na estrela) e carne de panela. Ali tem tomate e uma farinha torrada.

O rapaz enche o prato e saboreia cada porção como se estivesse no mais caro dos restaurantes, sentindo os sabores de sua terra, sabores nunca esquecidos e sempre desejados em todas as vezes que ia aos estabelecimentos comerciais que anunciam tal tipo de cardápio regional e dos quais saía inevitavelmente decepcionado.

Já ela fora mais modesta na quantidade, orientada a ter cautela pelo menos neste primeiro dia.

_Minha filha, vai devagar. Quem não tem costume de comida feita na banha às vezes passa mal, viu?

Para encerrar, doce de leite e queijo Minas, ambos feitos ali mesmo na propriedade e, segundo as palavras da própria visitante, indefectíveis.

Barriga cheia e louça lavada, avó e neto se sentam à sombra das árvores do terreiro para colocar a conversa em dia ao mesmo tempo em que observavam as galinhas, patos e angolas ciscando e os leitões fuçando a terra junto às centenárias raízes. Enquanto isso a moça se fecha no quarto para descansar da viagem e digerir o ótimo almoço e as novidades. Até ali vira muitas coisas que só conhecia das obras de Monteiro Lobato, e isso era só uma fração minúscula do que ainda estava por vir.

Ela não sabia, mas o melhor a fazer agora era mesmo descansar. Ainda teria muitas descobertas pela frente.

Fim da Parte NOVE

terça-feira, 26 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte OITO


Parte OITO

Tudo é novidade para a garota urbana. O ar puro, os cheiros da natureza e de fazenda, animais soltos, que a dona nomeava genericamente de criação. Estranhou a antiga casa com o piso ora de cinzento cimento, ora de grossas tábuas imperfeitamente assentadas e sem verniz, que rangiam sob seus passos. Andava temerosa de que o salto enfiasse em uma daquelas frestas e se quebrasse, o que seria praticamente uma tragédia. Nesse momento ficou realmente arrependida de não ter dado ouvidos aos conselhos de quem conhece bem o lugar e não ter vindo mais bem preparada, no mínimo calçada com uma rasteirinha.

Naquele instante passou a considerar exagerada a reação que teve enquanto era planejada a viagem. O lugar era pitoresco, um tanto rústico, mas realmente agradável, no mínimo essa seria uma experiência diferente. Nunca estivera no campo, no máximo visitou um pesque pague, mas como diria o namorado, aquilo não passava de roça enlatada, leite de saquinho, ovo de granja.

Só não gostou mesmo do banheiro, muito simples e sem qualquer acabamento, todo de cimento grosso, as louças quase que uma sobre a outra e encimadas por um grande chuveiro de aço inox que devia gastar energia suficiente para tocar uma siderúrgica e era o convite para um choque elétrico quase certo.

O quarto que ocupariam também era bem espartano, uma cama de casal fabricada provavelmente nos anos 60, um guarda roupas nem tão novo assim também de duas portas separadas por quatro gavetas e um espelho oval bisotado, um beliche com colchões de palha duríssimos e uma prateleira cheia de pequenas imagens de santos e marcas de velas que por décadas choraram suas ceras em honra da fé de alguém que ali se ajoelhou e se entregou a demoradas noites de orações.

Finalmente em volta da grossa janela de madeira sem qualquer acabamento além de uma mal passada tinta, estava dependurado um gigantesco rosário formado por contas de madeira maiores do que azeitonas, e muito provavelmente confeccionado com o único propósito de se tornar objeto de decoração.

_Bom, não é tão ruim quanto eu pensei que seria. Se eu não tivesse agido com tamanho preconceito poderia ter evitado muita briga na semana passada. – ela fala ao ouvido do rapaz ao tomar o seu lugar à mesa. Elevando a voz emenda:

_Então vamos conhecer essa tal comida mineira!

Fim da Parte OITO

Trem Bão é Coisa Boa - Pra entrar no clima

http://www.youtube.com/watch?v=uNiYRAfresM

domingo, 24 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte SETE


Quando pisou na varanda, o rapaz sentiu como se tivesse tomado um soco no estômago. Parecia que havia voltado no tempo.

O pequeno portão que separa a varanda do terreiro continua no mesmo lugar, com a tinta descascada e precisando de um pequeno empurrão para fechar o trinco. Ele ainda exerce a função original de impedir que as galinhas e os leitões entrem e perambulem pela casa.

Uma mesa de tábuas usada para secar vasilhas e que sempre foi manca permanece ao lado da porta da cozinha que conserva uma prateleira de madeira preta de fumo, com as antigas panelas e também o fogão a lenha com o banquinho feito de tronco de árvore onde se sentava em distante passado para ouvir estórias que lhe tiravam o sono nas escuras noites das férias escolares.

Sobre o fogão ainda existem algumas peças de toucinho defumando lentamente enquanto o feijão cozinha lentamente sobre as brasas, e empilhadas em um canto, as toras de lenha e os galhos finos que alimentam a boca de fogo que inevitavelmente remete ao passado.

Abrindo a pequena janela, tem-se a visão do pomar que abriga dezenas de árvores, como as pequenas e azedas mexericas de casca fina, laranja capeta e serra d’água, uma touceira de cana caiana, jambo e jabuticaba, além de algumas goiabeiras e mangueiras.

Aquele majestoso pé de manga espada continua dominando o cenário e superando em altitude até mesmo o esguio buriti, sob o qual passava horas na infância quebrando coquinhos e extraindo castanhas que torrava mais tarde na chapa do fogão.

Saindo da cozinha galgou o pequeno degrau e dessa vez as lembranças vieram aos turbilhões. O grande armário azul de madeira com suas quatro pesadas portas maciças praticamente esconde todos os mantimentos e utensílios da casa. A mesa ainda encostada à parede ladeada pelo comprido banco está coberta pelo mesmo forro estampado de motivos tropicais de sempre. Preso à cabeceira está o moedor de café em cuja manivela passou várias horas girando para fazer o pó, serviço que achava muito melhor do que torrar os grãos dentro da pequena cozinha e que encharcava qualquer um com abundante suor. Sorriu quando viu o liquidificador branco com somente um botão de madeira e que mantinha intacto seu grosso copo de vidro original – como isso ainda funciona? Só na minha casa comprei dois aparelhos em cinco anos! – Ainda ali na copa estava o desacreditado fogão a gás que destoava em tudo naquele nostálgico ambiente.

Mais alguns passos e chegou até a sala com suas paredes decoradas de velhos retratos a óleo de parentes por ele desconhecidos, um berrante, o antigo chapéu do avô todo manchado por dedos de nicotina e suor, além da inevitável Folhinha Mariana, cuja lenda reza que acerta até mesmo a previsão do tempo.

De móvel, somente o caixão de madeira, uma espécie de baú quadrado que antigamente armazenava arroz com casca e hoje guarda os apetrechos de montaria: um cabresto com freios, o velho arreio que fora do pai além de cordas, estribos e mantas.

Era ali no caixão que se sentava para almoçar, com as pernas pendendo de uma das altas janelas e esquecia do tempo absorto na paisagem que desfraldava sob seus olhos.

Dali avistava o cruzeiro de madeira sob o qual se reuniam todos os moradores da região nas sextas-feiras santas e atrás dele, a represa repleta de traíras. Alongando a vista ainda tinha a curva da estrada e o verde pasto onde pontilham até hoje algumas vaquinhas seguidas por seus bezerros. Emoldurando o quadro estava a serra que também fazia parte do terreno e escondia lendas e assombrações que povoaram o folclore local em sua meninice.

Com a mão no seu ombro, a avó gentilmente o desperta do torpor saudosista.

_Vem meu filho, vem comer enquanto ta quente. Vai ter muito tempo pra matar a saudade que traz no peito!

Fim da Parte SETE

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte Seis


Parte SEIS

Aquele cheiro já pagou todo aborrecimento da viagem como levantar de madrugada, pegar o Rodoanel com um trânsito infernal antes mesmo de o sol ensaiar sua saída, os muxoxos vindos do banco do passageiro, tudo isso se apagou da mente dele ao sair do asfalto e encontrar a antes tão conhecida estrada de terra e sentir os aromas que temperaram boa parte de sua infância. Terra, curral, mato mesmo... Humores que combinam em um terroir indescritível, e que trazem à tona da memória emoções que o rapaz gostaria de compartilhar com a companheira mas concluiu que não seria possível porque desde que pegaram a estrada vicinal, a garota só sabia pedir para que as janelas fossem levantadas e o condicionador de ar ligado.

Mas hoje ela pode falar o que quiser, suas birras e manhas entravam em um ouvido e saíam pelo outro, ele estava extasiado, reconhecendo as curvas e as serras, cada lagoa, casinha antiga que passava pelo caminho, ponte. Já haviam passado pela primeira e agora visualizava a segunda. Depois dessa, uma curva, o ponto de leite, a bica e o Corguinho. Pronto, na porta de casa. Olhou para ela pela primeira vez após o que, vinte anos? Teve a impressão de ter estado ali ontem, tudo como se lembrava, só o grande cachorro que viera recebe-lo quando desceu para abrir a porteira que era novidade – sim, ela disse que morreriam de fome no carro se dependesse dela para isso – Típico guardião de roça mesmo, grande, amarelo, cara de mau. Diante de tal visão ele parou a uma distância que considerara segura e começou a observar a fera que aparentemente fazia o mesmo de lá. Nesse espaço de tempo não pode deixar de imaginar como um animal daquele tamanho deveria se chamar. Titã? Bocarra? Cérbero? Seria o próprio Cujo?

Fiiiuuuuuuuuuuuuuuu!!!!!!!!! Seus pensamentos são interrompidos pelo agudo assobio seguido de um chamado que partiu de trás da cerca de madeira carcomida.

_Barranco! Passa aqui seu cão danado! Pode abrir a porteira, meu filho, esse bobão só tem tamanho, na verdade é uma moça! Ta com essa cara, mas é de curiosidade, carro que aparece aqui é só o besourinho da sua mãe e aquele caco de caminhonete velha do seu Joaquim pra fazer entrega, e que mais parece uma jardineira. Carrão importado do olho puxado assim igual ao seu nunca pousou por aqui não. Agora deixa de mocorongar e dê cá um abraço na sua avó!

O rapaz sorriu e andou na direção da simpática senhora – Nossa, ela não mudou quase nada nesses longos anos...

Estava de pernas bambas pela emoção do reencontro, e a recepção inusitada serviu para quebrar o gelo. Enquanto isso Barranco observava toda a cena de longe, com a cabeça inclinada para a direita fazendo aquela expressão tão engraçada e que sempre nos faz imaginar o que se passa dentro dessas cabeças caninas.

Se não prender esse monstro eu nem desço do carro, começa a garota já implicando antes mesmo dos primeiros cinco minutos no lugar. Sem nenhuma cerimônia a dona da casa abre a porta do veículo e a puxa pelo braço.

-Minha filha, deixa de frescura que estou morrendo de curiosidade para conhecer a moça que não deixa meu neto me visitar. To tão curiosa que minha barriga ta até inchando, ó!

De um puxão coloca a visitante de pé e a olha de cima a baixo com expressão de aprovação.

-É, agora eu entendo o porquê do sumiço, só se fosse muito bobo pra trocar uma mulher bonita da cidade como você por uma velha da roça como eu, e a gente criou ninguém bobo aqui não!

-Que isso minha senhora – tenta justificar-se – A gente não vem sempre é por causa do serviço mesmo. O ritmo de São Paulo é de enlouquecer, difícil ter um tempo para descansar, quanto mais ainda para viajar pra tão longe.

-Eu sei minha filha, to é brincando com você. Mas agora vamos entrar, eu almoço lá pelas nove mas como sabia que vocês iam chegar pela volta do dia deixei uma coisinha já pronta ali no fogão.

Enquanto os três caminhavam em direção a escada da antiga casa, a moça chama o companheiro ao canto.

-Você me mata de vergonha falando pra toda a sua família que não deixo se encontrar com eles. Imagino a péssima impressão que estão de mim agora.

-Sossega mulher, não percebeu que tudo não passou de uma brincadeira de minha avó? Aqui todo mundo é assim, bem humorado, descontraído. Tem que entender que aqui não é igual aos nossos ambientes profissionais. Aproveita pra relaxar e viver um pouco da vida no campo. E acelera que estou morto de fome!

-Vamos lá gente! Na cidade vocês não gostam de comer não? Parece mesmo que não. Vem cá, nessa semana eu juro que boto um pouco de carne em cima desses seus ossos.

E dizendo isso passou a colocar os pratos esmaltados na pesada mesa de madeira maciça da copa.

Fim da Parte SEIS

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte Cinco


Parte CINCO

Ela sempre fica alegre com as visitas da nora, mas dessa vez foi especial, hoje ela trouxe uma notícia esperada fazia tempo! Nem sabia há quantos anos não via o neto, menino estudioso e trabalhador, que saiu cedo de casa para enfrentar a cidade grande, foi pra São Paulo e conheceu a namorada na faculdade, formou e ficou por lá mesmo.

-Não me vai mimar o menino demais não, viu? Agora que ele aprendeu a tomar conta do próprio nariz não precisa voltar pra debaixo das saias da avó, brincava Dona Carmem com a sogra, que planejava as quitandas que prepararia para as visitas que ela considera tão especiais.

A conversa fluía solta enquanto as duas andavam pelo terreiro, apanhando os ovos nos ninhos que as galinhas achavam tão seguros, e que permaneceriam acreditando assim, pelo menos enquanto fosse mantido ali o indez, que neste caso era representado por um cascalho bem redondinho apanhado ali pertinho, bem na saída da bica onde até hoje se apanha a água para encher as bilhas de alumínio.

Com o clima mais calmo entre o casal, as malas começam a serem feitas. Para ele, uma média basta, leva o básico, pois conhece bem o território e sabe que não necessitará de nada mais que camisetas de malha e calças jeans, além de uns dois pares de tênis e um chinelo, leva também uma boa lanterna e um canivete e é claro, roupa de frio, afinal de contas, como ele vai voltar ao palco de sua infância sem enfrentar alguns mosquitos ao cair da noite às margens do Corguinho para pescar gordos bagres que só saem depois de o sol se deitar?

Já ela vai enchendo malas e sacolas com sapato, vestido, agasalho, meias, casacos, bolsas e mais bolsas – pra que levar bolsa, garota? Vamos é para a roça! – além de claro, secador de cabelos, depilador, pinça, alicate, frascos e mais frascos com líquidos e poções coloridas, de várias consistências e algumas até mesmo de cheiro duvidoso, que mesmo se uma mulher medisse seis metros de altura não teria área no corpo para passar isso tudo.

Após muitas súplicas, ela se contenta com três grandes malas que por si só já ocupavam praticamente todo o espaçoso porta-malas do carro, mas com jeitinho e paciência, tudo se acomoda com um mínimo de empurrões, amassados e imprecações.

Carga feita, tudo pronto para a partida que só se dará após o final de semana, afinal de contas, ele concordou em ir a pelo menos uma festa com ela antes da viagem, uma mão lava a outra e isso pode evitar uma irritante discussão durante as férias.

-Pode ficar despreocupada, te garanto que ele vai voltar lá pra São Paulo bem mais gordinho, aposto que aquela menina não cuida bem dele, não sabe fazer um biscoito branco, um tareco, doce de leite... Essas coisas de só colocar água quente que já ta pronto, ou aquela bruxaria de micro ônibus, sei não viu?

-È micro ondas, hahahahaha, e tem nada de bruxaria não. A senhora tem que ver que hoje em dia, as mulheres estão independentes, estudam, trabalham e são chefes de família, ainda conseguem tomar conta da casa e cuidar de filhos, pode até me usar de exemplo.

-Vai me convencer não. Antes de Deus levar meu filho, você ficava só em casa, lavava, passava e cozinhava, coisa que eu acho que só mulher deve de fazer e só deve de fazer isso. Não gosto disso de moderno não, outro dia fui no INPS lá em BH e vi uma mulher dirigindo lotação. Cruz credo! Combina não.

-Pois eu estou pegando meu carro e indo embora também, porque essa mulher hoje não é mais do lar e sim dólar, e amanhã cedinho tenho um avião a pegar. Na segunda a turma vai chegar, dá um abraço neles pra mim e não se esqueça que ela não trata mal dele não, é que hoje não existe mais Amélia no mundo não.

O toque irritante do despertador nem chegou a tira-lo do sono, A ansiedade não deixou o rapaz pregar o olho à noite toda, ou melhor, pedaço de noite. Combinaram de partir três horas da manha, para poder pegar o almoço na roça. A lembrança da comida da avó feita no fogão à lenha tira o sono de qualquer um!

Saindo do banho com uma cara de condenada a caminho da forca, a garota resmunga que está pronta e vai ligar a cafeteira automática para uma última xícara daquele que ela considerava o melhor pó de café de todos.

Fim da parte CINCO

terça-feira, 19 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte QUATRO


Parte Quatro

Foi impossível esconder uma pontinha de desapontamento de não poder contar com a presença da mãe lá na roça, tinha planejado tanto esse passeio, reunir a família, lembrar os bons tempos que nunca mais voltarão.

Ela não pode deixar de notar e aproveitou para dar uma alfinetada, não queria mesmo fazer essa viagem pro mato, já que vai andar, que seja para um lugar bacana, praia badalada, Serras Gaúchas... Nada de fumaça, bicho de pé e carrapato.

-Amor, vamos deixar pra lá essa coisa de roça, deixar pra quando sua mãe puder ir conosco, pelo menos assim terei alguém civilizado para conversar, não tenho assunto com gente que nem lê um jornal, só sabe tirar leite e capinar, além do mais, é o batizado do neto do Doutor Manoel, vai ter recepção badaladíssima naquele clube da Zona Sul, e você sabe como isso seria bom para alavancar minha promoção.

-Fala assim não, coração! Para uma pessoa tão inteligente você está parecendo ser bastante preconceituosa, mostrando um lado que eu não conhecia. Simplicidade não significa burrice, nem tempo para ler jornal eles têm, pois vão sim capinar e tirar leite, e pra fazer isso levantam quatro horas da manhã, sem preguiça nem má vontade, e sem precisar puxar saco de ninguém pra tentar melhorar sua situação. Ta vendo? Não queria que isso acontecesse mas você conseguiu me fazer perder a paciência. Mais um sinal de que preciso fazer essa viagem, voltar às origens e recarregar as baterias, nem sei quando terei outra oportunidade de retornar até minhas terras. Eu vou, se é tão importante para você ficar por aqui para desfilar nas colunas sociais e aparecer ao lado dos bacanas, esteja à vontade.

-Credo! Precisa ficar nervoso assim não, claro que não vou te deixar sozinho, sou sua companheira nos bons e maus momentos, mesmo que seja bom pra você e ruim para mim, não vou mentir dizendo que estou gostando dessa idéia, mas te acompanharei até lá. Só não me obrigue a gostar disso, você sabe muito bem qual é a minha praia.

Mesmo com a palpável tensão que pairava entre o casal no momento, eles se abraçaram e ele sorri, dizendo:

_ Lá você vai descobrir porque eu digo tanto que trem bão é coisa boa!

E ela entre os dentes responde:

_ É, aí vem você de novo com essa!

Fim da parte QUATRO

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte TRES

Dona Carmem andava pelos corredores admirada como sempre com os cheiros, cores e sabores daquele lugar. Sempre que ia ao Mercado Central, e sempre ia, ficava extasiada com a variedade e se perguntava sobre a origem daqueles produtos até mesmo exóticos, oriundos dos mais diversos cantos do país.

Sempre tinha em casa lingüiça caseira, queijo Minas do mais fresco possível, grandes ovos vermelhos de gema dourada, não esses amarelados e aguados que compram hoje na capital, além da verdadeira galinha caipira, de carne bem escura, que dá um caldo grosso e saboroso, ideal para aquecer as noites do mais severo inverno das Gerais, mas isso não tinha origem no Mercado, era tudo graças às boas relações que mantém com a sogra, mãe do falecido marido, quem visita com regularidade e que a abastece de iguarias da roça onde mora e produz de quase tudo, comprando às vezes açúcar e sal, e hoje muito a contragosto, óleo de cozinha porque o médico lhe deu uma chamada na responsabilidade pois a idade já não colabora e cozinhar somente na banha prometia um futuro de problemas cardíacos e vasculares.

Mas dessa vez ela andava pelos corredores atrás de uma iguaria mais fina, um carpaccio para oferecer às amigas que se reuniriam em sua casa em mais uma reunião do clube de leitura, desculpa pra tomar vinho e colocar a conversa em dia, e dessa vez ela tinha uma carta na manga.

Ia ensinar a elas dessa vez! Nunca chegou a engolir o ar de arrogância da Neuza quando mostrou o livro do momento, autografado por aquele autor que entende a alma das mulheres e disse que após o coquetel de lançamento desse livro ainda tomou uns drinks com ele, e ainda o definiu de atrevidamente recatado. Não dessa vez, pensou sorrindo, quero ver a cara delas quando mostrar a surpresa que trouxe de Paraty, lembrança da FLIP que além de vir em forma de dedicatória, também trazia memórias mais que pessoais. Elas vão ficar até roxas de inveja...

Absorta em pensamentos de vingança pueril, quase não percebeu que na bolsa o celular vibrava. Agora sorriu de verdade quando viu que era uma ligação do filho que hoje mora longe, e que raramente tem tempo de visitá-la.

Dessa vez ele convidava a mãe para irem até a roça, estaria de férias em algumas semanas e não mais agüentava de vontade de rever o cenário de sua infância, andar de pés descalços no chão de terra e prosear com a avó, ouvindo os engraçados ou tenebrosos causos de outros tempos.

Infelizmente dessa vez ela não poderia acompanhar o filho, pois compromissos com a empresa a fariam viajar para fechar contratos lá pelas bandas do nordeste. Mulher lutadora e de responsabilidade, perdeu o marido ainda nova e se viu no comando da família quase de uma hora para outra e em pouco tempo, assumiu cargo de diretoria em uma grande empreiteira, conseguiu formar o filho e conquistar certo conforto financeiro, e não galgou esses degraus com o hábito de desmarcar reuniões, mas garantiu ao rapaz que deixaria a avó avisada da chegada e tinha certeza que a boa senhora não se conteria de felicidade com a visita inesperada.

Desligou o telefone na porta da loja que procurava, e já entrou pegando na prateleira um pote de alcaparras.

Fim da parte TRES

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte DOIS

Parte DOIS

Ela senta na escada e puxa pela memória, lembra da lamparina de querosene que lançava fumos negros pelo ar, enquanto vaga-lumes e pirilampos lampejavam pela noite no milharal de frente a casa, ao lado da represa, ladeada de goiabeiras que faziam a festa dos passarinhos na época que os frutos maduravam. Nem dava quatro horas da manhã e o velho já estava rezando o terço antes de ir pra lida, enquanto ela ouvia as mesmas musicas de todo dia no radinho a pilha que ficava estalando suas sete faixas, e que de vez em quando pegava até uns programas estrangeiros, que gostava de ouvir por achar engraçadas aquelas palavras diferentes em vozes misteriosas que nunca teriam rosto.

O rádio chiava canções sobre a água a jorrar, chuá, chuá, e o rio a correr, chuê, chuê, enquanto colocava o comer na marmita: arroz, feijão, angu e carne de porco, tudo panhado no quintal mesmo, e o café numa garrafa de refrigerante arrolhada com o sabugo de milho, debulhado pra alimentar as galinhas.

Os meninos ainda dormiam, mas jajá era hora de apartar as vacas e tirar o leite, afinal sábado é dia de ir no povoado vender o queijo produzido na propriedade. Hoje é dia de torrar café e bater arroz, eles têm tarefa pro dia inteiro. Final de semana passado matou aquele porco que vinha engordando faz tempo, e uma banda inteira foi preparada e guardada na velha lata de leite cheia de gordura, que conservou carne que serviu pra alimentar duas gerações que cresceram ali.

Pensa que sábado vai matar aquela galinha vermelha que já parou de botar e deixar o molho pardo bem grosso, porque o velho chega do povoado sapecado de pinga, onde foi vender os queijos, acomodados em dois balaios dependurados ao lado do arreio da Bailarina, a velha e mansa égua da família, que já sabia até o caminho de casa, e precisava saber mesmo, pois ele vinha meio dormindo e meio acordado deitado no pescoço do bicho, chegando em casa suado e exalando álcool e perdendo assim o banho da semana, que toma só na sexta, véspera da viagem de negócios.

Olhando agora em volta, os olhos dela se enchem de lágrimas, faz tempo que o velho se foi, vitima de colapso ou algo assim, ninguém nunca soube direito, o médico que veio da cidade só disse que ele não sentiu nada. Os meninos, esses estudaram na escola do povoado mesmo e foram trabalhar na pedreira, e de lá mudaram pra cidade, que oferecia salário melhor e cesta básica. Um também já morreu e o outro sumiu no mundo, foi fazer fortuna no garimpo e nunca mais deu notícia. A lata com carne ainda está lá, no canto da cozinha velha que também guarda as panelas de ferro e o martelo de borracha pra bater nelas quando agarram na boca do fogão, e o torrador de café pendurado na parede preta de picumã nos cantos, sobre o fogão, o toucinho fica defumando esticado no jirau de madeira. Ela gosta do velho fogão a lenha, mesmo tendo lá dentro de casa um fogão moderno, que chegou junto com a geladeira e o liquidificador, aquisições possíveis graças a chegada da energia elétrica na zona rural. O fogão novo só é utilizado pela nora, que vez por outra aparece ali, mas ela não gosta da comida feita nele, nas panelas de alumínio, comida sem graça, sustenta nadica de nada. O rádio continua ali, tocando agora músicas diferentes, sem alma como as de antigamente. Hoje também tem televisão com parabólica, mas só é ligada em dia de visita também, igual ao fogão e o chuveiro elétrico. Esquenta muito menos que a serpentina.

È agora ela pensa sozinha: casa grande e velha quando fica vazia fica triste demais.

Fim da parte DOIS

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa




Após um ano da pesada rotina na bolsa de valores, ele vai aproveitar suas férias, e planeja visitar sua família no interior. Ela não está animada com essa vontade. Filha única que sempre morou em apartamento na maior cidade do país, moça fresca e caseira para quem a idéia de passar uma semana na pequena cidade em Minas não apetece em absoluto. Advogada de bacana, prefere ficar no meio do luxo a enfrentar o que ela chama de terra de matutos.

Ele rapaz simples, criado dentro de família grande e humilde, unida e trabalhadora, foi pra outro estado correr atrás do sonho, estudar e ser doutor, encarar o mercado disputado e tenso, e conseguiu aprumar, firmar o pé e fazer forte nome entre a selvagem fauna dos investidores.

Hoje a saudade dele falou mais alto, ele quer porque quer visitar a antiga casa, sentir o cheiro da terra, o cheiro da mineiridade que lhe faz tanta falta, peso no peito, angústia que não dá pra descrever, e fala pra ela: Vou de qualquer jeito!

Era tanta a ligação com a terrinha que ele trazia tatuada na parte de dentro do braço o belo triângulo escarlate, ladeado pela poderosa frase em latim, símbolo da luta pela liberdade, liberdade de um Estado inteiro, Liberdade Ainda Que Tardia.

Ligação tão forte que a distância se tornou agora insuportável.

Ela no entanto, faz bico, quer ficar e viver as noites nas boates, estão mesmo de férias, podem acordar tarde, curtir o finzinho do dia no Ibirapuera, depois um restaurante daqueles bem chiques...

Ta bom, já são cinco anos, fica contrariada mas dessa vez vai dar o braço a torcer, tudo bem, vamos pra essa roça!

Pode até parecer que os dois não possuem nada em comum, mas desde que se conheceram na lanchonete da faculdade, apareceram alguns pontos de convergência que foram estreitando os laços do relacionamento, e quando deram por si, já estavam morando juntos há quase cinco anos. Durante sua vida em comum, descobriram que eram apaixonados por cinema, MPB, vinho e gastronomia, manhãs preguiçosas rindo na cama e livros de contos clássicos e histórias de terror. Muita coisa tem que dar certo pra se manter um relacionamento, e algumas diferenças também são importantes a fim de se manter um certo tempero, a liga que forma a massa, que junta as peças, e aparentemente essa viagem é composta da amálgama que cimenta a relação, o pontinho de desacerto que pode ajudar a manter o casal unido ou, quem sabe, dar a ultima volta no laço que permanentemente fica no pescoço até de Orfeus e Euridices, quanto mais de pessoas comuns sem nenhuma intenção nem vocação de receberem os versos dos menestréis. Uma jogada realmente arriscada, mas o rapaz já tomou sua decisão, e assim está lançada a sorte.

Fim da parte UM

terça-feira, 12 de julho de 2011

A partir de amanhã


Olá amigos, a partir de amanhã irei postar "Trem bão é coisa boa"
Espero que gostem!
Detalhe: em quatro ou cinco partes!
Fui!