quinta-feira, 14 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte DOIS

Parte DOIS

Ela senta na escada e puxa pela memória, lembra da lamparina de querosene que lançava fumos negros pelo ar, enquanto vaga-lumes e pirilampos lampejavam pela noite no milharal de frente a casa, ao lado da represa, ladeada de goiabeiras que faziam a festa dos passarinhos na época que os frutos maduravam. Nem dava quatro horas da manhã e o velho já estava rezando o terço antes de ir pra lida, enquanto ela ouvia as mesmas musicas de todo dia no radinho a pilha que ficava estalando suas sete faixas, e que de vez em quando pegava até uns programas estrangeiros, que gostava de ouvir por achar engraçadas aquelas palavras diferentes em vozes misteriosas que nunca teriam rosto.

O rádio chiava canções sobre a água a jorrar, chuá, chuá, e o rio a correr, chuê, chuê, enquanto colocava o comer na marmita: arroz, feijão, angu e carne de porco, tudo panhado no quintal mesmo, e o café numa garrafa de refrigerante arrolhada com o sabugo de milho, debulhado pra alimentar as galinhas.

Os meninos ainda dormiam, mas jajá era hora de apartar as vacas e tirar o leite, afinal sábado é dia de ir no povoado vender o queijo produzido na propriedade. Hoje é dia de torrar café e bater arroz, eles têm tarefa pro dia inteiro. Final de semana passado matou aquele porco que vinha engordando faz tempo, e uma banda inteira foi preparada e guardada na velha lata de leite cheia de gordura, que conservou carne que serviu pra alimentar duas gerações que cresceram ali.

Pensa que sábado vai matar aquela galinha vermelha que já parou de botar e deixar o molho pardo bem grosso, porque o velho chega do povoado sapecado de pinga, onde foi vender os queijos, acomodados em dois balaios dependurados ao lado do arreio da Bailarina, a velha e mansa égua da família, que já sabia até o caminho de casa, e precisava saber mesmo, pois ele vinha meio dormindo e meio acordado deitado no pescoço do bicho, chegando em casa suado e exalando álcool e perdendo assim o banho da semana, que toma só na sexta, véspera da viagem de negócios.

Olhando agora em volta, os olhos dela se enchem de lágrimas, faz tempo que o velho se foi, vitima de colapso ou algo assim, ninguém nunca soube direito, o médico que veio da cidade só disse que ele não sentiu nada. Os meninos, esses estudaram na escola do povoado mesmo e foram trabalhar na pedreira, e de lá mudaram pra cidade, que oferecia salário melhor e cesta básica. Um também já morreu e o outro sumiu no mundo, foi fazer fortuna no garimpo e nunca mais deu notícia. A lata com carne ainda está lá, no canto da cozinha velha que também guarda as panelas de ferro e o martelo de borracha pra bater nelas quando agarram na boca do fogão, e o torrador de café pendurado na parede preta de picumã nos cantos, sobre o fogão, o toucinho fica defumando esticado no jirau de madeira. Ela gosta do velho fogão a lenha, mesmo tendo lá dentro de casa um fogão moderno, que chegou junto com a geladeira e o liquidificador, aquisições possíveis graças a chegada da energia elétrica na zona rural. O fogão novo só é utilizado pela nora, que vez por outra aparece ali, mas ela não gosta da comida feita nele, nas panelas de alumínio, comida sem graça, sustenta nadica de nada. O rádio continua ali, tocando agora músicas diferentes, sem alma como as de antigamente. Hoje também tem televisão com parabólica, mas só é ligada em dia de visita também, igual ao fogão e o chuveiro elétrico. Esquenta muito menos que a serpentina.

È agora ela pensa sozinha: casa grande e velha quando fica vazia fica triste demais.

Fim da parte DOIS

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