sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Capitulo SETE: "NOSTALGIA"


O sonho de ganhar a vida lhe parecia muito mais colorido em sua própria cama no singelo barraco de adobe lá no longínquo sertão brasileiro. Sabia que não seria fácil, mas esperava algo bem diferente da realidade cinzenta que agora está enfrentando. Realidade esta que começa na fria madrugada e se arrasta devagar por lentas e longas horas de pesado trabalho.

Nessa época parece que a solidão fica mais e mais pesada, vendo as pequenas luzes piscando e as árvores enfeitadas de coloridas bolas de vidro refletindo nas janelas das casas pelas quais passa a caminho do serviço.

Com o coração apertado e os pensamentos perdidos e direcionados a sua família, se pega perambulando pela cidade quando pára diante do Centro de Cultura Nordestina.

Já havia ouvido falar naquele lugar, onde os retirantes se reúnem e trocam lembranças de uma vida já distante no tempo e na geografia, e impressões sobre a luta vivida a cada dia na selvagem metrópole. Um pequeno refúgio onde se protegem dos olhares torcidos da população nativa e dos pesados fardos que carregam sobre os ombros diuturnamente.

Hoje é sábado, está livre da faina azáfama e se viu atraído pelos alegres sons vindos do interior do prédio. A música alta e os risos espontâneos eram um indicador que o propósito do lugar no final das contas, era unir aquele povo sofrido em torno de seus iguais, esquecerem um pouco o sofrimento e se lembrarem de que ainda assim poderiam se divertir como gostavam.

Rapidamente já estava ambientado, com o pouco dinheiro que levara, Raimundo fez a festa. Comeu tapioca com carne de vento, que era como a família chamava a carne de sol lá de onde vem, e bebeu umas duas cachaças, que era isso que ele gostava de tomar mesmo.

Sem perceber, já fazia parte de uma roda de pessoas que se divertiam com uma disputa de repentistas já famosos por ali, e que cantavam versos sobre um Papai Noel que chega ao sertão numa carrocinha rebocada por bodes e jegues, que arrancava frouxas risadas de todos os presentes.

“Seu menino nem te conto/ o que foi que aconteceu / foi coisa que eu ouvi/ mentiroso não

sou eu”

“Conte logo companheiro/ não venha com essa banca/ não te acho mentiroso/ nada hoje me espanta”

“Francisquinha na cacimba/ me gritou como é que pode?/ lá vem o Papai Noel/ puxado por oito bodes”

“How How How ou minha filha/ não saia tão de repente/ vou deixar todas crianças/ felizes com seus presentes”

“Bom velhinho não preocupe/ pode voltar para cidade/ aqui nesse nosso sertão/ já temos felicidade”

Inebriado pelas lembranças de casa, já era praticamente amigo de infância de uma figurinha simpática que conhecia tudo e todos naquele ambiente e que se aproximou dele com um largo sorriso no rosto e mão direita esticada:

_ Está perdido por aqui meu amigo? Venha cá tomar uma. A propósito, me chamam de Baianinho!

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Capítulo SEIS: MISÉRIA




Deitado no duro catre e contando as telhas do teto sem forro, ele faz um balanço de sua trajetória até aquele momento.
Não havia alcançado o glamour que havia sonhado enquanto caminhava pela terra trincada observando as ondas de calor se desprendendo do solo em direção ao áspero céu da caatinga.
Longe dos mil contos que almejava, recebe menos que um salário mínimo e na verdade, o vencimento nem chega a passar por suas mãos direito. Boa parcela do montante se perde pelo caminho nos bolsos de uma outra pessoa.
O agenciador mantém em sua posse os documentos dos retirantes que acreditam serem ajudados por ele, que lhes arranjou moradia e emprego. Pelo serviço, leva uma comissão razoável e antes que o pagamento chegue até Raimundo, já fora ali descontada juntamente com o absurdo aluguel do cortiço, que nada mais é que um ínfimo quarto entre dezenas de outros iguais, contando com uma ridícula peça chamada de cozinha e um de banheiro equipado de vaso turco e um pedaço de cano na parede que faz as vezes de chuveiro, e que é habitado por baratas e outros animais que ele nunca havia tido a oportunidade de conhecer lá no nordeste.
Mas na verdade para ele isso pouco importa. Depois de um longo dia que se inicia as quatro da manhã e se prolonga debaixo de pesadas caixas e centenas de sacas dos mais diversos produtos que circulam incansavelmente pelo pátio da CEAGESP, ninguém mais está se importando com indesejáveis companheiros de quarto.
Por incrível que pareça, ainda sobram alguns trocados no final do mês, poucas migalhas remanescentes da mordida do Jacaré e que são guardadas na antiga lata de manteiga escondida debaixo de um taco solto sob um dos pés da velha e enferrujada cama de tubos esmaltados.
Está cansado e com saudades de casa, o corpo doído pelo trabalho diferente daquele lá na lida, mas o que se há de fazer? A gigantesca cidade precisa se alimentar, e ele está ali para garantir que o ciclo se complete dia após dia.
Com este pensamento flutuando em um estado de quase hipnose, adormece, ou melhor, apaga ouvindo a cacofonia que se filtra pelas finas paredes geminadas da simplória habitação coletiva...

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Capitulo CINCO: "CONTATO"


“Contato”

Agora que era real ele começa a sentir a responsabilidade de sua atitude. A milhares de quilômetros de casa, em uma cidade que só viu pelas novelas, com pouco dinheiro e sem nenhuma pessoa em quem confiar, qual deveria ser seu primeiro passo?

Com os dois pés atrás e apavorado pelas histórias de crimes hediondos e de golpes sofridos por incautos retirantes, histórias essas que rodam de boca em boca e que lhe foram contadas com toda solenidade necessária a um verdadeiro conto de terror da Idade Média claro que ficou amedrontado ao ser abordado por um rapaz bem vestido, elegante até, e que muito sem cerimônia lhe dispara a queima roupa:

_Boa noite! Acho que eu posso te ajudar!

A noite era seu elemento natural. Amava o ar úmido da madrugada e os sons da cidade que nunca pára, e que nas mais altas horas da noite ficam mais claros, límpidos. Agora ele via a fera despertando para as atividades cotidianas. A correria dos garis, o tilintar de marmitas nas sacolas dependuradas nos ombros dos velozes motociclistas cruzando as largas pistas em velocidades e manobras vertiginosas.

Atravessou o pátio da escura oficina desativada que ainda abriga bancadas e quadros de ferramentas, baldes e uma dezena de veículos semidesmanchados, de onde foram retiradas as peças úteis, revendidas a preços módicos para clientes que nunca se importaram de saber a procedência dos produtos oferecidos.

Após passar a corrente no portão enferrujado e decadente, dá a partida na antiga perua que insiste em funcionar apesar de toda sorte de adaptações feitas para que ainda se preste ao serviço de transportar muito mal acomodadas, de oito a doze pessoas levando-as do cortiço fétido situado a dois quarteirões de distância até o gigantesco pátio da CEAGESP, onde passariam o dia carregando incontáveis caixas dos mais variados produtos a troco de uma quantia financeira irrisória e quem sabe, se tivessem sorte, levariam para casa alguma fruta pouco amassada descartada nas lixeiras do pátio de transbordo.

Por falar em sorte, resolve passar no “Posto da Desova”, nome sinistro pelo qual era conhecido o vasto posto de combustíveis ali pertinho, na Marginal mesmo, onde paravam os ônibus clandestinos que vinham do nordeste trazendo sua mercadoria favorita: mão de obra barata.

Ao estacionar a Kombi já tinha definido seu alvo. De pé entre as bombas com o olhar perdido e trazendo no rosto ainda imberbe o cansaço da viagem, ele viu algo que fez seus astutos olhos brilharem. Forte e inocente, combinação ideal para alguém sem escrúpulos explorar em benefício próprio.

_Ainda bem que foi descoberto por mim... Pensou enquanto se armava de seu mais inocente sorriso.

_Boa noite! Acho que posso te ajudar! Não se surpreendeu ao ler o medo no rapaz, reação comum de praticamente todas as pessoas que abordava para fazer sua proposta, elas vinham armadas de um pré-conceito de que todos na cidade grande querem lhes fazer mal. Isso não é de todo uma verdade, mesmo não sendo também de todo uma mentira. _Precisa ter medo não, meu jovem, sou agenciador e vi que você acabou de chegar de longe e se não tiver nada em vista posso te arranjar um emprego pra você começar amanhã mesmo, podia ser até hoje, mas conheço um lugar baratinho bem aqui perto, e você aproveita o dia pra se acomodar. Qual é mesmo a sua graça?

_Me chamo Raimundo, senhor. Fala timidamente enquanto estende uma mão trêmula para cumprimentar a irreverente figura.

_Prazer, Raimundo, pode me chamar de Jacaré, venha cá que vou te pagar um cafezinho. Ô Seu Custódio! – grita para um homem de avançada idade que vende salgados naquela área com o auxílio de uma bicicleta equipada por garrafas e caixas térmicas – Me vê um pingado e um croquete aqui pro meu novo amigo!

O despertador toca estridente, mas ela já está acordada, fica deitada mais uns poucos minutos para o sono escorrer pelos cabelos. Levanta e separa a medicação do pai, passa o café e após tomar o banho matinal, começa uma verdadeira viagem em direção ao serviço na casa dos Martins, há muita coisa a fazer nessa manhã, dia de fazer compras e vistoriar a limpeza do jardim e da piscina. Baianinho ficou uma semana na casa das máquinas, dizendo que estava limpando os filtros, agora é hora de ver se o serviço foi bem feito. Se aquele caboclo tiver me enrolado nisso, nossa conversa vai mudar a partir de agora.

Quatro da manhã, ele nem está perto de acordar. A semana foi pesada mesmo, muita coisinha a se fazer na manutenção da casa, aproveitou até para lavar a caixa d’água, serviço que não era feito há tempos. Os patrões estão chegando de mais uma viagem. Melhor encontrarem o lugar em ordem. Correu de verdade de forma que tudo possa estar em perfeito funcionamento no retorno deles. Hoje vai aproveitar para acordar um pouco mais tarde, vai passar na casa de ferragens e comprar uma chave que está faltando pra arrumar o carrinho de mão, o que vai facilitar em muito o andamento dos cuidados técnicos necessários ao bom funcionamento da casa.

Com o celular programado para tocar as seis da manhã, ele ainda dorme o sono dos justos.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Capitulo QUATRO - "BAIANINHO"


“Baianinho”

_Onde está o aquele enrolado que não o vi até agora, meu Deus? Olha só como está essa tuia, parece até que a planta está arrepiada, de tanta ponta que ta aparecendo, quero isso podado ainda na parte da manhã. Dona Helena chega hoje de Campos do Jordão e todo mundo sabe como ela gosta do jardim bem cuidado. Alguém podia me fazer o favor de ligar pro Juarez imediatamente!

-Calma aí, dona Gisele, Chefinha, hoje eu tive que vir de bicicleta porque a patroa precisou da passaginha pra levar o menino no médico lá no centro! Quem diz isso é uma figura de voz fina e sotaque nordestino carregado, com a pele curtida pelo sol, grande sorriso franco e não mais de um metro e cinqüenta de altura.

-Juarez das Chagas, mas pode me chamar de Baianinho, o prazer é todo seu! Assim se apresenta o faz de tudo da família Martins. Contratado como limpador de piscina, hoje é uma peça quase que fundamental para o funcionamento da pequena mansão. Torneira pingando? Chama o Baianinho! Ralo entupido? Chama o Baianinho! Vidro quebrado, parafuso que não sai, lâmpada queimada e até a troca do óleo de algum carro, adivinha pra quem vai sobrar? Sempre que é convocado, chega o simpático empregado, que domina os diversos misteres dos afazeres domésticos, sabendo até mesmo a recorrer quando necessário, a uma prosaica gambiarra.

Solta mais uma de suas pérolas ao resolver um tremor incomodo da máquina de lavar roupas somente com o aperto de um alicate:

_Um homem sem um pedaço de arame e um tubo de cola-tudo no bolso pra mim não é homem.

-Olha que essa máquina já foi na assistência umas duas vezes dona Gisele, por isso falo pra patroa, não adianta insistir, não troco o nosso tanquinho por nada.

Mas dessa vez ele não pode ajudar, não entende muita coisa de plantas, por isso não quer se arriscar a mutilar a bela conífera sempre verde que enfeita o jardim principal da casa. Além de não ter o conhecimento específico para a tarefa, não possuía também as ferramentas necessárias. Apesar disso não ser um problema, pois era só pedir que o material lhe seria providenciado sem maiores perguntas.

-Melhor eles contratarem um jardineiro somente para podar essa arvore, senão isso vira mais uma das minhas obrigações. Ainda mais hoje, que pretendo passar o dia inteirinho limpando os filtros da piscina...

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Capítulo TRES - GISELE


“GISELE”

O dia começa cedo na residência dos Martins, e sete da manhã o café já está na mesa e as crianças de banho tomado e vestidas, prontas para as aulas de piano, caratê e natação. Gisele observa enquanto elas fazem a primeira refeição, ao mesmo tempo em que recolhe e separa a correspondência, colocando o jornal no escritório e as contas a pagar no aparador que ostenta um belíssimo abajur de bronze representando uma figura feminina de traços gregos e seios a mostra, peça de decoração que é o xodó do dono da casa, trazida de uma inesquecível viagem a Mikonos faz uns cinco anos.

Mais que uma empregada doméstica, Gisele já faz praticamente parte da família Martins, que a abrigou desde muito nova, quando seu pai perdeu todas as economias em um plano econômico do governo, que limpou a poupança guardada para a compra da tão sonhada casa própria. Sistemático ao extremo, não acreditava em nenhum investimento além da então confiável caderneta de poupança e graças a essa atitude, perdera tudo que havia economizado até aquele momento, praticamente uma vida de serviço tomada por uma única assinatura feita por alguém que não enxerga pessoas em planilhas, somente contas e números.

Como forma de ajudar nas despesas da casa, a menina começou cedo a trabalhar tomando conta das crianças dos Martins, velhos conhecidos de seus pais, amigos dos tempos áureos e que souberam investir de melhor forma suas finanças e não sofreram o forte baque econômico que debilitou de forma irreversível o nem tão forte coração do pai de Gisele, e que hoje mal consegue se locomover em sua pequena casa situada em uma comunidade carente, onde faz bico consertando os poucos eletrodomésticos defeituosos que lhe vem em mãos.

Outrora estudante de colégio particular e cursinho caro, freqüentava clubes badalados e nem sabia por qual porta embarcar em um coletivo, que sonhava se formar em medicina e viajar o mundo ajudando os necessitados com os Médicos Sem Fronteiras, hoje desperta antes das quatro da manhã, arruma a própria casa e pega um ônibus e um trem para recomeçar a rotina de limpar e cuidar da casa, só que dessa vez a de outra família, que mesmo não sendo sua própria, a trata como se assim fosse, e que lhe acolheu quando estava em sérias dificuldades e hoje não a deixa trocar de emprego por nada. Ocupando uma função meio que de governanta, meio que de gerente, controla toda a manutenção do imóvel delegando obrigações entre os vários funcionários do lugar. Partindo do motorista e chegando ao jardineiro, todos eles ficam impressionados com a energia com a qual a pequena e bela figura mantém aquele pequeno exercito funcionando dentro de sua própria ordem unida.

domingo, 2 de outubro de 2011

Capitulo DOIS: "JACARÉ"


“JACARÉ”

Ele não tem culpa de ser assim. Este é o pretexto que dá a si próprio para as ações de moral duvidosa que costuma colocar em prática. Vítima da sociedade. Mas nem precisa mais se desculpar, está refratário a sentimos análogos ao remorso, está forjado a ferro e a fogo. É feito do mesmo material do qual são feitas as ruas da grande capital. É feito de concreto, aço e pólvora.

Jacaré. O verdadeiro nome se perdeu com o passar dos anos e das instituições. As poucas e próximas pessoas que o conheciam já não estão mais sobre a Terra. Este é o preço que se paga por ganhar, ou tentar ganhar a vida com facilidade no bairro do Campo Limpo, que de limpo mesmo só leva o nome, e que esconde a verdadeira qualificação dessa controversa figura.

Adotou o pseudônimo do perigoso réptil por carregar uma característica em comum, morde o que está ao seu alcance, e quando acerta o bote, o que geralmente acontece, arranca pedaços substanciais e deixa sua vítima à deriva. Esta geralmente sucumbe ante o estrago infligido.

Utilizando-se de eficientes métodos de mimetismo social, charmoso e sedutor, se aproxima sorrateiro, abocanha e ludibria pessoas ingênuas para sua própria vantagem.

Hoje longe da vizinhança de origem para sua própria sobrevivência, mora em um antigo escritório localizado no interior de uma oficina abandonada bem perto de seu local preferido para granjear novas presas.

Predador ou parasita, até agora não conseguiu definir em qual categoria se encaixa, apesar de se considerar um simples artista da oportunidade.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Quantos Contos? Capitulo UM - Raimundo


Pessoal, saindo da inércia, vou começar a postar meu novo trabalho, chamado "Quantos Contos?"
Espero que gostem de verdade, ou mintam bem, hahahahahaha!



“RAIMUNDO”

Ele realmente estava ali. Olhava sorridente pela janela embaçada do barulhento e empoeirado ônibus clandestino. Quatro dias de viagem, foram três rodando e um parado às margens da estrada pra trocar uma peça qualquer quebrada na transmissão, segundo informou o motorista mal humorado, mas todo o sacrifício valeu a pena. Ele estava ali.

Sabia que conseguiria e agora assistia o movimento frenético e as luzes coloridas de um sem número de janelas se equilibrando umas sobre as outras.

O trânsito na larga pista estava uma verdadeira loucura e ainda eram somente quatro e meia da manhã!

Muitos tentaram ganhar a vida lá no sul, ele sabia, e acabavam retornando para a casa envergonhados e até mesmo humilhados, mas com ele seria diferente. Sabia o abecedário e até fazer conta de dividir e porcento. Bem diferente daquela vez em que teve de desenhar o nome debaixo de borrachada na sala do delegado Doutor Sebastião, depois de furar o bucho do quinzinho no dia daquela briga lá no forró. Raimundo Ferreira.

Cabra macho mesmo leva o punhal no bolso e não leva desaforo pra casa, tinha só quinze anos e quando voltou para casa, ainda apanhou da bainha do facão de rabo de tatu do pai:

_ Já que foi preso mesmo, devia era ter matado aquele filho dum cabrunco, seu moleque frouxo!

Mas agora era tudo diferente, assinava direitinho e escrevia de peito estufado o Ferreira, nome forte e de respeito no fundo lá do sertão. Segundo a falecida avó, tinha até mesmo um parentesco meio distante com o cangaço. Bem, sua experiência mais próxima disso foi aquela com o pobre do Quinzinho, e mesmo assim só riscou a barriga dele com o punhalzinho coral.

Mas isso já tinha muito tempo, depois disso fez até mesmo curso do governo, aprendeu a fazer cisterna pra aproveitar a água das chuvas e aprendeu até mesmo a fazer receita de palma pra gente comer!

Até beber pinga com o Quinzinho na zona de tolerância, o Boteco da Dona Martina ele foi depois do episodio. E foi muitas vezes. Mas isso lá era normal, se queria ver uma mulher, tinha que visitar a Dona Martina. Música muito alta, perfume muito forte, pinga muito ruim. Mas tinha que agüentar, era com aquilo que devia se contentar, e pra eles era muito bom. A se era! Lembrava bem daquela pretinha com quem foi pela primeira vez, as mãos pesadas de quem passou a vida no sertão, os olhos pesados de quem sofrera nas mãos da família o que ali tava fazendo pra ganhar uns trocados. A boca de um batom muito vermelho, igual o vermelho das unhas, e a meia fina desfiada. Porque a meia fina desfiada não saia da sua cabeça?

E assim a vida ia passando como um filme pela sua cabeça, o sertão, a seca, os espinhos da palma, a necessidade de andar léguas para freqüentar as aulas de supletivo, os dias felizes no Boteco da Martina.

_Tudo vai mudar agora, eu vim pro sul, não tenho medo de serviço e vou trabalhar muito para ganhar algum dinheiro e trazer mainha e os meus irmãos pra morar comigo. Se der mesmo certo, vou ficar mesmo rico! Quem sabe consigo ganhar até mesmo mil reais?

E perdido nesses devaneios, nem percebeu que o ônibus estacionava em um posto de gasolina às margens de um rio escuro e fétido, onde boiavam juntamente com milhares de garrafas plásticas, carcaças de geladeiras e pneus velhos.

_Ô Paraíba, ponto final!

E dessa forma começa uma nova vida. De madrugada no pátio de um posto de gasolina na maior cidade do país, sozinho carregando uma velha mala de couro de cabra, uma sacola de pano e muita coragem para enfrentar o mundo.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Como se fala filha da **** em arabe de 72 formas diferentes

Qaddafi, Muammar
Al-Gathafi, Muammar
al-Qadhafi, Muammar
Al Qathafi, Mu’ammar
Al Qathafi, Muammar
El Gaddafi, Moamar
El Kadhafi, Moammar
El Kazzafi, Moamer
El Qathafi, Mu’Ammar
Gadafi, Muammar
Gaddafi, Moamar
Gadhafi, Mo’ammar
Gathafi, Muammar
Ghadafi, Muammar
Ghaddafi, Muammar
Ghaddafy, Muammar
Gheddafi, Muammar
Gheddafi, Muhammar
Kadaffi, Momar
Kad’afi, Mu`amar al- 20
Kaddafi, Muamar
Kaddafi, Muammar
Kadhafi, Moammar
Kadhafi, Mouammar
Kazzafi, Moammar
Khadafy, Moammar
Khaddafi, Muammar
Moamar al-Gaddafi
Moamar el Gaddafi
Moamar El Kadhafi
Moamar Gaddafi
Moamer El Kazzafi
Mo’ammar el-Gadhafi
Moammar El Kadhafi
Mo’ammar Gadhafi
Moammar Kadhafi
Moammar Khadafy
Moammar Qudhafi
Mu`amar al-Kad’afi
Mu’amar al-Kadafi
Muamar Al-Kaddafi
Muamar Kaddafi
Muamer Gadafi
Muammar Al-Gathafi
Muammar al-Khaddafi
Mu’ammar al-Qadafi
Mu’ammar al-Qaddafi
Muammar al-Qadhafi
Mu’ammar al-Qadhdhafi
Mu`ammar al-Qadhdhâfî 50
Mu’ammar Al Qathafi
Muammar Al Qathafi
Muammar Gadafi
Muammar Gaddafi
Muammar Ghadafi
Muammar Ghaddafi
Muammar Ghaddafy
Muammar Gheddafi
Muammar Kaddafi
Muammar Khaddafi
Mu’ammar Qadafi
Muammar Qaddafi
Muammar Qadhafi
Mu’ammar Qadhdhafi
Muammar Quathafi
Mulazim Awwal Mu’ammar Muhammad Abu Minyar al-Qadhafi
Qadafi, Mu’ammar
Qadhafi, Muammar
Qadhdhâfî, Mu`ammar
Qathafi, Mu’Ammar el 70
Quathafi, Muammar
Qudhafi, Moammar
Moamar AI Kadafi
Maummar Gaddafi
Moamar Gadhafi
Moamer Gaddafi
Moamer Kadhafi
Moamma Gaddafi
Moammar Gaddafi
Moammar Gadhafi
Moammar Ghadafi
Moammar Khadaffy
Moammar Khaddafi
Moammar el Gadhafi
Moammer Gaddafi
Mouammer al Gaddafi
Muamar Gaddafi
Muammar Al Ghaddafi
Muammar Al Qaddafi
Muammar Al Qaddafi
Muammar El Qaddafi
Muammar Gadaffi
Muammar Gadafy
Muammar Gaddhafi
Muammar Gadhafi
Muammar Ghadaffi
Muammar Qadthafi
Muammar al Gaddafi
Muammar el Gaddafy
Muammar el Gaddafi
Muammar el Qaddafi
Muammer Gadaffi
Muammer Gaddafi
Mummar Gaddafi
Omar Al Qathafi
Omar Mouammer Al Gaddafi
Omar Muammar Al Ghaddafi
Omar Muammar Al Qaddafi
Omar Muammar Al Qathafi
Omar Muammar Gaddafi
Omar Muammar Ghaddafi
Omar al Ghaddafi

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A salvação da cultura

Simplesmente eu encontrei a solução para o problema de desinteresse que a maioria dos brasileirOs tem pela literatura.
Ao zapear pelo Yahoo a fim de conferir meus spams - é só isso que venho recebendo ultimamente, além das orações e correntes, é claro - me deparei com uma linda foto composta por algumas mulheres em roupões coloridos e a legenda ao rodapé: " Mulheres que Lêem Nuas reúnem a cada..."
Deixa pra lá o restante da legenda! Percebeu a primeira parte? Isso mesmo! "MULHERES QUE LÊEM NUAS"!... UAU! Pena que é na lingua shaekesperiana...
Imagina o potencial disso em nosso idioma patrio? Você poderia até mesmo ouvir naquelas doces vozes todas as centenas de páginas de um romance indigenista sem se preocupar na prova do vestibular, mas estará sim imaginando a própria Ceci em sua frente. Ou quem sabe Gabriela Cravo e Canela, praticamente em uma versão narrada em 3D, e ainda com a vantagem de que, por serem quatro as leitoras, pode se dar ao luxo de ignorar a antológica imagem de uma sapeca Sônia Braga a galgar degraus de uma escada rumo ao telhado de um casebre qualquer.
Logicamente por puro interesse cultural e científico, pesquisei a respeito da trupe de tão inteligentes meninas e gostei particularmente da entrevista de sua fundadora, Michelle L'Amour a um seríssimo telejornal denominado Naked News. A propósito, um ótimo trabalho da repórter Victoria Sinclair, diga-se de passagem.
Agora, colocando o machismo de lado, posso suspirar aliviado! Finalmente a cultura está salva!
Ao pesquisar na agenda do grupo, descobre que nosso país não está nos planos delas para uma visita. Pos é, nem tudo é perfeito!

Não deixe de assistir a entrevista aqui:

http://vimeo.com/20683123



quinta-feira, 11 de agosto de 2011




Hoje a tarde eu assisti a uma refilmagem de um programa que eu simplesmente amava quando era criança. Um programa que mostrava as aventuras de um garoto e seu fidelíssimo companheiro, um belo cão pastor alemão chamado Rin Tin Tin. O filme data de 2005, e diferente das histórias retratadas na antiga série não se trata da época da cavalaria, mocinhos contra peles vermelhas defendendo paliçadas de fortes americanos. O que nos é passada nesta película é a história original, com os pequenos cães encontrados em um abrigo anti-bombas alemão na França ocupada durante a Primeira Grande Guerra. A mãe e três filhotinhos sobrevivem a um ataque aéreo, assim como o folclórico casal francês que escapa de semelhante ataque se escondendo nos túneis do metrô. O nome? Rin Tin Tin e Nannette, que segundo a lenda local, viraram amuletos da sorte em forma de bonecos de crochê. Os pequenos animais são separados entre si e da mãe e o assunto se foca no nosso herói, Rinti, como é carinhosamente chamado. Como todo pastor alemão, um atleta. Ágil e esperto, inteligente e de quebra, ainda fazia uns truques bem bacanas e acompanha seu companheiro humano nas missões mais perigosas e até mesmo nas aventuras mais pitorescas.
Cruel ironia... somente esperei o filme acabar para levar a Tammy em uma consulta veterinária. Para quem não a conhece, se trata do pastor alemão mais doce e carinhoso desse mundo, que após trabalhar comigo no canil da instituição de segurança pública na qual sirvo, veio passar seus felizes últimos dias na companhia de minha família, e nisso já se vão seis anos!
Ela, como todo pastor alemão, é uma atleta. Ágil e esperta, inteligente e de quebra, faz uns truques bem bacanas mesmo. Além disso me acompanhou nas mais perigosas missões e até mesmo nas aventuras mais pitorescas, além de ser minha mais fiel confidente.
A diferença entre o herói do cinema e a heroína da vida real? Ela foi diagnosticada com uma doença terrível tanto para cães quanto para humanos... Leishmaniose, uma condenação a morte para um ser inocente e sem malícia, condenação cruel de um ser incapaz de causar mau a qualquer criatura.
mesmo após diversas picadas de injeções e vitaminas, e de sangue retirado da veia e tudo o mais, ela volta da clinica marchando ao meu lado, toda altiva e serelepe de esparadrapo no braço e tudo.
Estou sem lugar, escrevendo pra desabafar e soluçando enquanto vejo a silhueta da minha Loba passar pela porta de vidro da sala e de quando em quando dá uma paradinha e respira pelo vão de baixo dessa porta, me chamando pra brincar no quintal. Estou com um pote gigantesco de biscoito pra cachorro nas mãos e os deslizo por este espaço quando ela se aproxima pra me chamar, não, não vou abrir a porta esta noite, não tenho coragem de encarar aqueles olhinhos brilhantes que ignoram o cruel destino de sua condenação.
Já faz algum tempo eu escrevi por aqui que todos os cães vão para o céu, e quando você chegar lá, aproveita pra correr atrás daqueles carneirinhos de nuvens enquanto eu não chego. Quando a gente se encontrar novamente, vamos nos sentar na calçada do estacionamento e ficar vendo a cidade passar, como sempre fizemos aqui embaixo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Bicho Solto

_O senhor, mais do que ninguém doutor, precisa saber que eu sou sujeito homem, cabra macho mesmo, sem vacilação. Nunca gostei de patifaria e nem de esculacho. Meu papo é reto e minha conversa não faz curva, por isso repito de novo que sou sujeito homem, viu doutor? Vi muita coisa ruim lá no mundão, e isso me fez do jeito que sou hoje. A senhora minha mãe era empregada de bacana, de doutor igual ao senhor e por isso eu estudava em escola no centro, a patroa era quem pagava e até me dava o uniforme que não servia no filho dela. Mas sabe como é, né? Agora o pessoal chama de "bule", mas na minha época era escama mesmo, coro que a gente tomava depois da aula daqueles almofadinhas, gangue de mauricinhos. Pode dar o nome que quiser pra isso doutor, mas nao adianta, dói que é o cacete! E foi assim até o dia em que eu enfezei e canivetei um filhinho de papai.
Já tinha planejado tudo aqui na minha cabeça e levei roupa e chinelo e um canivete para a aula. O primeiro que me zoasse ia tomar. Podia ser qualquer um, não escolhi ninguém em especial, ele foi o promeiro, só isso. Me chamou de neguim e me deu um tapa na cabeça. Pronto! O sangue ferveu e fiquei cego. Furei as tripas do moleque e corri para o morro. Não lembro do que aconteceu muito bem não, parece sonho, só que dessa vez acordei lá na Fundação. Pobre espetar filho de rico roda mesmo, e lá eu fiquei por onze meses. Entrei aluno e saí professor. Não parava mais em casa e rapidinho já tinha formado uma turma da treta. A gente tava na atividade com tudo. Se dava pra levantar um troco tinha um irmãozinho lá na correria. De olhar carro a estourar "tochico" a gente topava de tudo. De quase tudo, quer dizer. Pois sou sujeito homem e não fazia covardia, e nem gostava que os irmãos não cumprissem a lei do crime. Caguete e patife com a gente era no pau. Sempre cumpri com a minha palavra e por isso sou considerado pela rapaziada, tá ligado?
Agora eu estou aqui, na frente do senhor, mas tô bolado de verdade com essa parada.Só que dei minha palavra e vou ter que cumprir. Lá fora no convívio eu sou bicho solto, aquilo tudo mesmo, mas aqui eu compreendo a responsa disso. Sou cabra macho sim, sujeito homem, e por isso estou com medo dessa questão, doutor.
- Se preocupa não, é um procedimento rápido e indolor, e nem preciso dizer que é necessário, não? Você está fazendo tempestade em copo de água e se não estivesse falando tanto já tinha até acabado. E além do mais, não se preocupe pois todo homem deve passar por isso quando chegar na sua idade. Precisa ter medo não.
- Eu sei doutor, sou sujeito homem, sou ramona não. Por isso é que estou com esse medo todo. Tô com um medo danado é de tomar gosto...

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Trem Bão é Coisa Boa FINAL


Parte FINAL

Sentada na escada da varanda ela observa a estrada enquanto separa a palha das espigas de milho rodeada por dezenas de galinhas que ficam por ali esperando um ou outro grão que se desprende e cai fora do cesto e que é disputado a ferozes bicadas.

-Até parece que estão passando fome, seus bichos doidos!

De um tempo pra cá ela vem sentindo muita falta do casal de jovens lá de São Paulo e fica se repreendendo: -Nunca vi isso, depois de velha a gente fica sofrendo por causa dessas bobagens...

Nisso um som bastante familiar lhe chama a atenção e ela olha a tempo de ver a antiga caminhonete de seu Joaquim fazer a curva e diminuir a velocidade até parar em frente à porteira.

-Ô de casa! Tomei a liberdade de trazer a correspondência da senhora que estava lá na caixa de correios comunitária lá na mercearia.

-Obrigada, seu Joaquim, eu nem sei quando é que ia poder dar um pulo lá pra comprar umas coisinhas de que ando precisando!

-É só a senhora me passar a listinha que mais tarde o menino trás de moto.

-Gasta agora não. Depois eu vejo direitinho o que to precisando e mando a lista pelo caminhão de leite.

Sobe a rampa conferindo a correspondência e se surpreende ao encontrar a carta com o carimbo da agência paulistana entre as contas de energia elétrica e o jornalzinho da cooperativa.

Ansiosa, rasga a lateral do envelope e puxa o papel bem dobrado. Imediatamente começa a ler a mensagem escrita em letra bem caprichosa e em papel decorado de flores.

“Oi vó, sua mais nova neta está morrendo de saudades! Como estão as coisas por aí? Aqui estamos bem, trabalhando muito, é claro, mas conseguimos uma folga na semana do feriado do dia 12 e planejamos passar esses dias aí, será que tem problema nisso? Já não estou mais agüentando o barulho da cidade. To aflita, até sonho com o cheirinho do mato e o gosto dos biscoitos.

Ah, tenho uma surpresa pra senhora! Em breve vai ter mais um mineirinho de coração pra correr atrás dos pintinhos no quintal! Esse sim vai ter uma infância completa, de bicho de pé e joelho esfolado!

Quando a gente chegar eu conto as outras novidades, to morrendo de saudades! Beijos!

Sua neta favorita.”“.

Emocionada, ela sente as pernas falharem e se senta novamente. Toma consciência do cheiro forte e adocicado das flores da jabuticabeira e do canto contínuo e sibilante das cigarras.

– Vão chegar na época certa! Vou ensinar minha neta a fazer aquela geléia caseira!

O sol avermelhado começa a se esconder entre as árvores no horizonte criando longas e tristes sombras.

-Essa é uma das horas mais bonitas do dia. Lusco fusco? Por do sol? Ocaso? Qual a melhor maneira de chamar o poético momento?

_Aurora?

–Não, aurora é de manhã, uai!

–Aurora?

Ela se vira na direção da voz e divisa entre os fulgurantes raios de sol uma imagem esmaecida que aos poucos vai ganhando nitidez. Tal visão lhe tira o fôlego. O que antes era apenas uma sombra disforme se transforma em um cavaleiro trazendo aos cabrestos nobre corcel.

_Meu Deus! Exclama ao perceber que a presença ali era a de seu velho, conduzindo a fiel Bailarina, sorrindo e lhe estendendo a mão.

_Aurora, Aurora minha velha, já pode vir comigo. Nossa missão aqui já foi cumprida. Essa boa herança que carregamos por toda uma vida não vai mais ser perdida. Agora chegou a hora de descansar...

FIM

Trem Bão é Coisa Boa Parte Treze


Parte TREZE

Um novo dia nasce na roça e todos se levantam com as galinhas. Estão esperando o caminhão de leite que hoje está trazendo sacos de farelo e medicamentos para o gado.

Durante a manhã fria conversam em volta do fogão aceso tomando café e comendo o queijo Minas acabado de sair da forma. Em breve, Chicão chegará do curral com o latão de leite que dessa vez não se tornaria queijo e sim, o cremoso e famoso doce que o casal levaria para casa, junto com algumas dúzias de ovos, café moído, mel de jataí que a própria moça colhera na cabaça e é claro, alguma quitanda.

O tacho já estava pronto e o fogo aceso lá fora no fogareiro de chão ao lado do forno de biscoitos.

Enquanto o trabalho demorado de virar o doce de leite era executado, o rapaz foi apanhar as doces laranjas campistas e as azedas laranjas capeta, algumas pimentas e uma lembrança da infância: castanhas de buriti.

Hoje ele faria o almoço e se atirou à cozinha. Encontrou alguns enlatados no grande armário de madeira e caprichou no arroz de forno, e aproveitou a lingüiça que defumava no jirau para dar um sabor todo especial ao feijão tropeiro. Não podia faltar, é claro, uma tradicional sobremesa mineira a base de queijo e goiabada, famosa Romeu e Julieta, a qual dera um toque especial acrescentando a mistura um pouco de requeijão cremoso.

A euforia dos dias anteriores aos poucos ia sendo substituída por um sentimento de saudade de algo que ainda não tinham perdido, sentimento confuso e de difícil explicação mas que doía uma pontadinha aguda, lá no fundo do estômago.

As malas já estavam prontas e o que não era essencial já estava até mesmo no porta-malas do carro. Amanhã era a partida e este era um assunto que estava sendo evitado.

Enquanto o doce esfria o trabalho continua. Aproveitando a lenha que o rapaz havia juntado para o preparo do doce e que sobrara, anfitriã e visitante resolvem preparar uma fornada de pães de queijo e vão sovar o polvilho.

Nesse tempo ele vai deixando o veículo pronto para a partida, verificando óleo e água e carregando o GPS com os dados da viagem.

A moça vai ao delírio ao experimentar o pãozinho ainda quente com uma fatia de queijo fresco em seu interior, que derrete imediatamente e só quem já experimentou conhece tal iguaria.

Tudo pronto para a partida na manhã seguinte, eles passam o resto do dia e uma boa parte da noite fazendo planos para um retorno e até mesmo quem sabe, uma viagem da avó até São Paulo?

O último dia amanhece e começam as despedidas. Com lágrimas nos olhos a garota abraça a senhora e pergunta se pode chamá-la de vó. Esta, muito emocionada sorri e lhe pede que traga rapidamente alguns bisnetos para trazer de volta a alegria até a antiga casa de fazenda.

Com um rápido toque na buzina o rapaz põe termo na despedida e acena à avó, que assiste com um nó na garganta o carro desaparecendo na curva à esquerda.

-É Barranco, agora somos só nós dois de novo. Vem cá nego, esquentar sol com essa velha, vem!

Fim da Parte TREZE

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte DOZE


Parte DOZE

Hoje de manhã o quadro se inverteu. A garota levantou cedo e aprendeu a acender o fogão a lenha e a lavar os queijos que eram desenformados. Descobriu os ninhos das galinhas em meio o capim no quintal e assistiu à ordenha ao som das modas de viola que crepitavam do velho rádio de caixa de madeira instalado entre as tábuas do curral. Enquanto arriscava a passar o café pelo coador de pano dependurado no tripé de arame o rapaz continuava no quarto. Levantou um par de vezes durante a madrugada e agora estava brigado com o sol se mantendo escondido na penumbra do quarto. A cabeça latejava com força para lembra-lo que fazia tempo deixara aquele ambiente e se quisesse aproveitar de tudo que ali lhe era oferecido, teria que começar aos poucos, especialmente quando se tratasse da forte cachaça produzida pelo caseiro da avó.

Aos poucos ia pegando intimidade com as coisas da roça. Perguntava sobre os utensílios da cozinha. O que era aquilo e como funcionava? Surpreendeu-se ao saber que o estranho objeto esférico com uma pequena janela e a manivela comprida dependurado na parede era o torrador de grãos que preparou o pó do delicioso café que estava tomando ali. O fruto maduro era colhido lá mesmo no quintal e depois de seco e torrado era moído na hora do preparo, o que dava um sabor todo especial, sem falar no aroma forte e pungente que dominava o ambiente na parte da manhã. Ficou sabendo das histórias de infância do namorado, das brincadeiras e aventuras vividas no lugar e percebeu que havia em si um vazio que nunca seria preenchido. Uma infância onde teve de tudo que o dinheiro poderia pagar. Melhores escolas, colônias de férias, piano e balé.

Agora aquilo tudo parecia tão artificial que chegou até mesmo a sentir saudades de um passado que não teve, um passado de pés no chão, de contato com a terra. Correr no campo em meio às árvores e bichos no quintal, molhando os pés na bica e colhendo as laranjas praticamente através da janela do quarto.

A partir deste momento começa a compreender a ligação do povo com aqueles elementos. Era algo muito mais forte do que uma relação proprietário e propriedade. Era algo quase que espiritual, uma troca de energia que o rapaz chama de mineiridade.

A velha senhora sorria satisfeita. Sabia que cedo ou tarde conseguiria conquistar o coração da garota outrora mimada e que aos poucos se entregou à simplicidade do lugar e do povo, afinal, é impossível resistir a toda essa simpatia e carisma.

Estava até mesmo recebendo alguma ajuda ali no serviço da cozinha e no preparo dos queijos. Na verdade não era bem uma ajuda, podia chamar era de boa vontade. Às vezes a moça até atrapalhava, mas não chegou a dizer nada. Agora que ela animou a deixar da caverna em que se escondia e dar o ar da graça não iria constrange-la com alguns pequenos detalhes. Ela parecia realmente feliz manipulando os queijos sob a água corrente ou girando o moedor de café após quase perder o fôlego soprando o braseiro mortiço para atiças as labaredas no fogão a lenha.

Ele criou coragem para sair do quarto e antes sequer de cumprimentar as mulheres que trabalhavam panelas e temperos na alquimia da cozinha, desceu os degraus de pedra e foi colher algumas laranjas-capeta a fim de fazer um suco gelado capaz de curar a ressaca mais infame e devastadora de todas.

Ficou alegre ao notar a companheira entretida com as tarefas domésticas e comeu satisfeito o prato que ela fez questão de servir, frisando que tivera importante participação no preparo do almoço mineiríssimo: tutu de feijão, couve, arroz e lingüiça e uma salada de tomate com pepino e cebola temperada somente com sal, vinagre e pimenta-do-reino.

Ela não pára de falar sobre a descoberta da cozinha simples e saborosa e que, quando voltar para casa fará uma festa temática com direito a trens e uais.

Avó e neto trocam um olhar de cumplicidade, sabiam que uma hora ou outra ela entregaria os pontos e deixaria de lado aquele pré-conceito com o qual viera armada da cidade grande e se deixaria levar pelo clima e boa energia do lugar.

-Trem bão é coisa boa mesmo! Ela exclama após saborear um belo naco de lingüiça e dispara a rir.

Barriga cheia e a calma do campo, ingredientes perfeitos para o cochilo vespertino, e elas vão curtir a sesta nos seus quartos enquanto ele, que havia levantado da cama tarde, passa a mão em um facão e se dirige até a touceira de bambu próxima à bica d’água. Estuda pacientemente as esguias hastes calculando seu comprimento e testando a flexibilidade. Definido o alvo, vibra a lâmina com precisão e corta a vara rente ao chão. Contente com a escolha, estala a ponta do caniço no ar e toma a trilha de volta a casa onde as mulheres descansam tranqüilamente.

Esse ritual ele conhece bem. Limpa a varinha de bambu e amarra a linha de nylon, escolhe o anzol adequado e a pequena chumbada. Com uma enxada e uma velha latinha de massa de tomate em mãos, rapidamente recolhe um bom número de minhocas para o evento da tardinha.

Enquanto a avó e a namorada se dedicam ao preparo da janta, ele pega um balde de estanho e se encaminha ao Corguinho com sua tralha de pesca.

Isca o anzol e não demora muito fisga um acará – Nossa! Tanto tempo sem pescar e o primeiro é justamente um acará! Eu mereço! – Mas o esforço, se é que tal atividade possa ser chamada dessa forma, vale a pena! Em pouco tempo ele tem nadando em seu balde cinco ou seis bagres e duas traíras de bom tamanho. – Elas podem até jantar uma caprichada macarronada com ovos cozidos, mas vão me desculpar... Hoje eu mereço uma bela fritada desses peixinhos.

Dessa forma, mais um dia no campo se acaba, e passa tão rapidamente que os visitantes já começam a planejar um retorno em breve para poderem aproveitar dos benefícios do campo de todas as formas possíveis, afinal de contas, a semana já estava indo para o seu final e na velocidade na qual os dias transcorriam, em um piscar de olhos já estariam de volta à correria da cidade e à escravidão do relógio.

Fim da Parte DOZE

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte ONZE

Parte ONZE


Acordou sentindo uma angústia inexplicável. Um peso no peito, quase uma falta de ar. Aos poucos ela vai entendendo os sintomas. Longe de casa, num lugar estranho, escuridão e silêncio total. Sente falta dos sons da cidade grande, das luzes intermitentes das viaturas lá embaixo, e ela protegida da violenta realidade por mais de uma dezena de andares, na sua bolha protetora, apartamento hermético que a isola do mundo. Escolhe seus contatos, e os escolhe a dedo. Amigos, amores e até mesmo familiares, só se envolve com quem bem quer.

E agora aquela nova situação se impõe. Fora de seu ambiente tão bem controlado, está na casa de pessoas estranhas que se aproximam e se dão liberdades e intimidades tão naturalmente que a deixam perplexa. Aquilo incomoda profundamente e a primeira noite ali só serviu para aumentar tal sensação.

Consegue se entregar ao sono somente com o início da alvorada, quando um estreito facho de luar se filtra pelas frestas da janela formando um tênue quadrado luminoso na parede antes imperceptível na densa escuridão da noite do campo.

Diante de tal imagem, aos poucos se entrega ao sono novamente e nem percebe o rapaz se levantando com toda a disposição do mundo para encarar o dia que estava começando.

Uma diáfana neblina ainda se despregava do capim no pasto à frente quando o rapaz enfiou a cabeça sob a torneira da pia e sentiu todos os músculos do seu corpo se retesando ao contato da água gelada da cisterna. Se estivesse na cidade, certamente estaria dormindo àquela hora, e acordaria bem mais tarde. Mais duas, três horas de sono ainda, quem sabe?

Mas na roça era impossível permanecer deitado, ainda mais agora que era quando as coisas começavam a acontecer. A estrada que durante o dia ficava praticamente deserta agora se apinhava de trabalhadores indo para as plantações de milho e pimentão, além de algumas carroças levando adultos e ás vezes até mesmo crianças até as capineiras onde passariam o dia cortando a baquearia para alimentar o gado nos cochos.

A avó já havia se levantado fazia tempo. Passou o café com rapadura e lhe serviu uma fatia de queijo bem fresco, recém tirado da fôrma. Ele mesmo foi quem lavou a peça usando para isso um sabugo de milho a fim de retirar o excesso de sal que o cobria, ao mesmo tempo em que era apresentado a Chicão, o caseiro que iria acompanhar até o curral para assistir à ordenha de uma meia dúzia de vacas daquelas bem ordinárias que nem perto passam das campeãs de produção leiteira que estava acostumado a ver nas exposições de gado, mas que eram mais que suficientes para a fabricação dos queijos que ajudavam a complementar a magra pensão com que a proprietária administrava o terreno.

Juntamente com Barranco, ele acompanha Chicão que leva um pedaço de corda, um balde e um pequeno banco, os instrumentos necessários para a conclusão da tarefa. Nas suas próprias mãos vai uma caneca de zinco esmaltado e que pelas marcas de descascado que ostenta, está ali desde sua infância.

Ao contrário das grandes fazendas nas quais o processo se dá de forma totalmente mecanizada, naquela propriedade tudo acontece da maneira tradicional. O caseiro amarra as patas traseiras da vaca e enquanto se senta no banquinho posiciona o balde e começa o trabalho de ordenha manual. É mais demorado e menos eficiente, mas de que outra maneira ele conseguiria encher a caneca com leite quente tirado na hora, e ainda rir frouxamente lembrando do bigode formado pela espuma, igualzinho ao que fazia quando era ainda um meninote?

Graças à habilidade de Chicão rapidamente se tem pouco mais de meia lata de leite, que é levada até a varanda dos fundos da casa, onde se adiciona o coalho para o início do processo de fabricação dos queijos que no final de semana serão comercializados no armazém do povoado ali perto.

Agora os dois vão tocando o pequeno rebanho estrada a fora acompanhados pelo fiel Barranco ao local onde as vacas permanecerão pastando até à tardinha, quando Chicão fará o trajeto inverso e trará o gado para dormir no curral próximo à casa. Para o caseiro, a caminhada que dura cerca de meia hora é um trabalho corriqueiro, já para o jovem investidor é uma verdadeira aventura cheia de sobressaltos, com direito até mesmo de correr no mato em meio a pontiagudos espinheiros no encalço desta ou daquela novilha desgarrada.

Já são dez horas, minha filha! Exclama a senhora ao encontrar com a garota no meio da sala, e nem pôde conter o riso ao perceber que a visitante vestia um longo roupão rosa claro e trazia nas mãos uma bolsa transparente com dezenas de produtos de beleza e higiene, além de no mínimo, umas três toalhas.

-Pra que tudo isso meu Deus? No meu tempo a gente se virava com uma barra de sabão de coco e saco de açúcar. E eu que achei que tava moderna demais comprando sabonete cheiroso e agora vejo você parecendo prateleira de botica! Se ta com isso tudo pra ficar aqui na roça quero nem ver quando for casar com o meu neto! Hahahahahaha!

E rindo com vontade, deixou a garota ir para o banho com um tímido – A gente precisa estar preparada para tudo, não é mesmo?

Agora que estava de banho tomado e energias renovadas, se junta à anfitriã que amarrava um feixe de plantas ao lado de uma curiosa construção abobadada erigida a um canto do quintal.

Ao perceber sua chegada a dona de casa lhe sorri e pergunta se poderia fazer um favor, momento no qual pensa muito a contragosto, que além de estar onde não queria conseguiu até mesmo arrumar um serviço para fazer. –Aff, deveria ter ficado no quarto lendo o livro como fiz ontem... Que será que será que vai me sobrar agora?

-Pega essa vassourinha e passa ela no forno, por favor?

Bom, isso ela poderia fazer. Mas olhou em volta e não viu nem vassoura nem forno.

Percebendo o embaraço, a velha aponta o feixe de ramos que acabara de atar e a estrutura arredondada feita de tijolos aparentes e entendeu tudo. Ficou admirada com o aroma que as folhas emanavam enquanto limpava as cinzas e pedaços de carvão de dentro do forno a lenha, e soube que os ramos eram de alecrim, mas não aquele de supermercado, tempero de vidrinho. Era alecrim do mato. Tempero de verdade mesmo. E não é que era mesmo bom?

Olhou um pouco preocupada para o relógio, pois já sentia os primeiros sinais de fome e perguntou se a preparação do tal forno seria para o almoço.

-Né não, menina. O almoço já ta é pronto, sopa de mulher parida que eu fiz enquanto você ainda dormia. Dizendo isso, apontou para cima e ela pôde ver os rolos de fumaça se desprendendo da chaminé da cozinha e flutuando até se desfazerem na brisa da manhã que se acabava. O forno é para as quitandas, afinal, hoje é terça-feira, dia de rezar o terço e hoje vai ser aqui em casa.

Ela já havia ouvido sobre as famosas quitandas mineiras, mas essa tal sopa de mulher parida? –Sei lá se vou comer isso não, ainda bem que trouxe umas barras de cereal – pensa enquanto tenta imaginar que prato bizarro seria este que lhe seria apresentado à hora do almoço.

-Bora almoçar, Chicão.

-Vou não, patrão, tenho que ficar aqui na Capoeira pra curar a criação e quem sabe pegar um ou dois preás pra comer tomando uma guia mais tarde, né? Além disso, to com a marmita que a dona fez, se voltar com ela cheia arrumo problema certo.

-Só você mesmo! Então vou chegando que se ficar aqui mais dez minutos vou ter que cair ali no pasto e comer capim junto com as vacas.

Passa a tronqueira que separa o terreno da família da estrada de terra e começa a caminhada até a sede cerca de três quilômetros serra abaixo, mas não sem antes parar para colher algumas laranjas campistas que nasciam naturalmente ali no pasto. Mais uma doce lembrança de sua infância. Doce mesmo. Ao observar a árvore nota que os frutos mais altos estão bicados pelos pássaros, sinal de que as laranjas estão deliciosamente maduras e no ponto exato de se colher.

Descendo a sinuosa estrada vai lembrando de quando subia acompanhando o pai e o avô, ora correndo para tentar acompanhar os largos passos dos adultos, ora sentado atrás do carro de bois que ia rangendo as grandes rodas de madeira enquanto ficava riscando com a varinha de bambu o chão que corria para trás sob seus pés ouvindo o condutor chamando os bois carreiros e bater a vara de ferrão na cangalha: Eia Apache! Eia Cigano!

Absorto em tais pensamentos nem percebeu que já saltava o último dos mata-burros e conseguia avistar no alto da pequena colina depois da curva a aconchegante casinha de pau a pique. Ao ver a fumarola se elevando do telhado da cozinha sentiu a boca se encher de água e apertou o passo.

-Hoje eu como até ficar triste!

Ele quase nem acreditou quando entrou na cozinha com o prato na mão. Na panela de ferro borbulhava o caldo da galinha, feita em sua própria gordura, o que dá um sabor todo especial. Em outra, o quiabo sequinho, que só quem tem grande experiência na cozinha mineira consegue fazer. Forra o prato fundo com farinha de milho e deita o caldo, não sem antes pescar o coração, lembrando de uma traquinagem de criança, quando ele e os primos disputavam tal guloseima praticamente a tapas.

Enquanto isso a avó explica à moça que o prato se chama sopa de mulher parida porque antigamente era preparado para as mulheres que davam a luz, de forma a lhes dar força e resistência e se recuperarem após o trabalho de parto.

O rapaz enche a colher com gosto e vontade – Nem lembro quantos anos fazem que eu não como uma comida mineira de verdade. Já estava enjoado dos magros caldos temperados na base de pozinhos e tabletes. Faltou só o ora pro nobis, que seria um acompanhamento perfeito, mas este foi prometido para a próxima visita.

A garota, que não gostou do prato já ao ouvir o nome ficou surpreendida com o sabor e textura. Comeu e repetiu. Além disso, prometeu se aprofundar na história da culinária da região e seus nomes peculiares. –Já que estou aqui, melhor mergulhar na tradição. Se estou em Roma...

Para a idosa, não teve noticia melhor. Adorava falar das historias e estórias locais, lendas e folclores, e agora ganhou uma ávida ouvinte, curiosa pra absorver toda aquela prosa matuta. Enquanto tirava fornadas de biscoito e bolos de fubá com queijo, falava sobre a misteriosa luz que aparece por ali às margens da estrada e que acompanha os incautos pedestres que caminham sozinhos pela noite. Ela mesma nunca viu, mas já deu abrigo a apavorados transeuntes que juram ter sido perseguidos pela fantasmagórica chama, especialmente durante a semana santa. A garota se divertia com a narrativa, cheia de gestos e sons que davam ainda mais ênfase ao conto e quase sem perceber, foi abrindo a guarda ante a simpatia contagiante da simples anfitriã.

A tarde correu rápida e a mesa estava farta com os biscoitos de queijo e canela, além de diversos bolos, café de rapadura e leite caramelado, tudo isso para receber as comadres e os compadres no ritual semanal de rezar o Rosário, tradição e cultura que permanece arraigada profundamente entre os moradores do povoado.

Com o cair da noite, a casa vai se enchendo e o papo fica alegre com os causos que todos contavam, até que começa o momento da oração em que a fé se sobrepõe à confraternização e se entregam às contas dos terços elevando as vozes em uma ladainha monótona, quase um mantra, quando parecem entrar em um estado de hipnose e nada mais importa além de cantar as orações ritmicamente.

Encerrado o rosário, novamente a casa se ilumina de vozes e começa o banquete. Alguém levou um caldo de feijão e outro um de mandioca. Chicão chama o rapaz e lhe apresenta a cachaça que fabrica no pequeno alambique que tem no terreiro de casa. Mais alguns homens se juntam e formam uma pequena rodinha de degustação, tirando gosto com caldo e torresmo. Não gasta muito tempo e ele já está embriagado pela forte bebida, desacostumado e até um pouco empolgado foi um pouco além da conta e do limite. Nesse instante percebe o olhar de desaprovação da companheira, larga os companheiros de copo e a abraça pela cintura.

-É melhor dar uma maneirada, sei que está se encontrando com suas raízes, mas não significa que precisa me deixar envergonhada.

Assim como foram chegando, os participantes se retiram e a casa volta à sua calma costumeira. Desacostumada a deitar tarde, a dona se arrasta para a cama e o casal também se recolhe. Excitada com o dia cheio de acontecimentos e novidades, a garota começa a falar sobre as descobertas, o forno e as quitandas, os causos que ouviu e a simpatia que começava a nutrir pelo povo simples do lugar, a comida tradicional e os temperos colhidos ali mesmo, bastando somente dar uns poucos passos até a hortinha que era cultivada no quintal, com pimentas, hortelã, cebolinha e manjericão, além de outras ervas aromáticas.

Tão empolgada que estava, nem percebeu que ao invés de ouvi-la, o rapaz havia dormido assim que tocou os travesseiros. Embalado pelas atividades do dia e pelas cachaças da noite, já sonhava com o verde capim dos pastos e o marrom avermelhado dos cupinzeiros que cresciam aqui e acolá entre as trilhas pisadas pelas vacas no pasto.


Fim da Parte ONZE

sábado, 30 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte Dez


A tarde desenrolou sem surpresas, papo jogado fora, conversa colocada em dia.

O rapaz contava para a avó o sucesso do trabalho, a escada galgada para chegar até ali e os planos para o futuro.

A velhinha o punha a par das mudanças ocorridas ali, as coisas que eram produzidas, quantas vacas, porcos e galinhas compunham seu plantel.

A moça assistia a tudo de longe tentando entender o gosto daqueles dois por aquele pedaço de chão longe da civilização, cercado de mata por todos os lados e praticamente sem comunicação com o resto do mundo. A primeira coisa que fez quando chegara ali fora tirar o celular da bolsa para anunciar as amigas sobre o termo da viagem e lhes contar as primeiras impressões sobre o local. E a primeira impressão para ela não foi nada agradável.

Em qualquer lugar que fosse não conseguia sinal nenhum e isso lhe causava uma certa ansiedade. Melhor mesmo foi se deitar um pouco, descansar das horas de asfalto e cascalho para dar uma melhorada no humor que aos poucos teimava em se degradar. Com a cabeça um pouco mais fresca sentou-se no antigo banco de madeira junto à cerca e se pôs a ler um grosso livro que levou já com a intenção de se distrair nos tediosos dias que teria que passar na presença da família do companheiro.

- Pelo menos com isso em mãos não preciso dar muito assunto a ninguém, fico na minha e ainda passo o tempo sem nem perceber os mosquitos e baratas que devem existir aos montes por aqui, credo!

A janta simples foi servida as cinco da tarde e a dona da casa começou a se recolher logo após a Hora do Ângelus, momento para ela e também para a grande maioria dos moradores daquelas bandas, era o mais solene do dia. O sol se põe cedo na roça e assistir a este espetáculo da natureza ouvindo a Ave Maria de Gounod chega mesmo a ser emocionante.

-Deus os abençoe meus netos, essa velha já vai é pra cama, afinal a lida começa cedinho. Boa noite e durmam bem porque amanha o dia vai ser muito assoberbado.

Dizendo isso passou as tramelas nas portas e os trincos nas janelas, pegou o terço gasto entre os dedos e foi para o quarto.

O jovem casal segue seu exemplo e se fecha no aposento onde ao se apagar as luzes, não conseguem ver absolutamente nada além do mais profundo negrume.

Fim da Parte DEZ

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Direto de 1993

Meus amigos, estava procurando localizar um documento e encontrei este texto datilografado em amarelada folha A4. Foi na verdade uma redação para a escola e na época fiquei decepcionado em não ter tido a oportunidade de ler em frente à classe.
Mesmo assim, correndo risco de me expor ao ridículo, postarei agora tal texto na íntegra. (estou preparado para o bulling literário)

Sexta-feira, mais ou menos vinte e uma horas. Como sempre, estávamos (eu e os amigos mais íntimos) no ponto da cidade mais badalado pela juventude, esperando aparecer alguma aprontação como festa, viagem, uma menina pra beijar, coisas desse tipo.
Na esquina a uns quarenta metros a gente estava um rapaz aparentando ter seus dezessete, dezoito anos, de olhar triste e cabisbaixo. Uma de suas mãos segurava um copo de bebida, talvez um Campari, e a outra mantinha escondida no bolso em vã tentativa de se proteger do frio intenso que fazia. Ele nos olhava como quem tinha inveja da alegria e animação que emanava de nossa turma reunida.
Cara estranho! Parece doido! - esse era o comentário geral das pessoas que estavam a nossa volta. Procuramos ver de onde partiam tais impressões e quando olhamos ao redor, ele já não estava mais lá. Ia ao largo cabisbaixo e com as mãos nos bolsos.
Chega o sábado! Dia de folia! mil e um agitos, de todos os cantos se ouve música, risos, piadas e brincadeiras, e naquele mesmo lugar, ali estava ele, o rapaz solitário. Parecia que a alegria dos frequentadores do lugar servia apenas para aumentar sua tristeza.
Um dos integrantes de nossa turma o convidou a participar com a gente. Ele fez um sinal com as mãos que parecia ser um sim e veio interagir conosco.
Papo vai, papo vem, as horas foram passando e quando dei por mim a madrugada ia alta e estávamos somente os dois conversando. Ele foi aos poucos se desinibindo e contando a sua triste história de vida que é mais ou menos assim:
Após a separação dos pais, ele se vê em uma grande crise depressiva que fora agravada ainda mais pelas brigas que a mãe e os irmãos travavam constantemente consigo por não compreenderem sua condição. Graças a isso tomara então uma atitude que depois reconhecera precipitada, ao vender tudo o que tinha. Seu video game, a bicicleta e alguns livros que lhe eram caros. Assim arrecadou algum dinheiro, além de retirar um fundo que tinha na poupança e resolveu sair de casa. Por algum golpe do destino ele veio parar aqui em nossa cidade, mas como não conseguiu arranjar trabalho o dinheiro estava se acabando, e ele já não mais sabia o que fazer.
Passado algum tempo nos tornamos grandes amigos e paulatinamente ele ia melhorando o quadro.
Talvez por ciúmes de nossa amizade, não sei ao cero, só sei que meus outrora amigos foram se afastando de mim até chegar ao ponto em que não havia ninguém a quem pudesse contar para conversar, tampouco para confiar a não ser, é claro, com o meu novo colega.
Não sei como puderam localizá-lo, quem sabe pelas emissões dos cheques, mas ele recebeu triste notícia originária de sua família.
A irmã mais nova andava muito adoentada e queria vê-lo. Ninguém sabia estipular um prazo , só se sabia que este seria bem curto, mas como ele não tinha mais dinheiro nem recursos para voltar a sua casa e o orgulho besta não lhe permitiria receber qualquer ajuda, inclusive a minha, voltou a ficar depressivo, triste e cabisbaixo, como eu o havia conhecido, mas dessa vez o desespero o levou a medidas mais extremas.
Fiquei sabendo da notícia no colégio: Enforcado, sepultamento as dezesseis horas dessa quarta-feira, em cova rasa, cerimônia simples, quase como um indigente.
Corri aqui e ali, e consegui levantar algum dinheiro em casa somente para ele não ficar completamente esquecido entre tantas lápides impessoais, brancas e frias...
Enquanto a urna funerária de compensado barato desaparecia lentamente sepulcro adentro eu recebia os votos de pêsames e sentimentos que partiam de meus falsos amigos e lia o que havia mandado escrever na placa que eternamente cobriria seu corpo inerte:
Conforme Rabindranath Tagore disse: "O carimbo da morte é que dá seu valor à moeda da vida, e torna capaz de comprar o que tem valor real." Emocionado, acrescentei entre dentes: A verdadeira amizade!
Descanse em paz, meu grande amigo!



Trem Bão é Coisa Boa Parte Nove


Parte NOVE

Toda orgulhosa de sua arte culinária a boa senhora coloca a comida à mesa e vai anunciando os pratos aos comensais.

_Meus filhos, não fiz nada de mais hoje não, só um comer simples, repara não, ta?

Mais para a semana eu prometo que capricho, hoje vocês vão ter que se agüentar com arroz, feijão batidinho (faz questão de dizer que foi feito na estrela) e carne de panela. Ali tem tomate e uma farinha torrada.

O rapaz enche o prato e saboreia cada porção como se estivesse no mais caro dos restaurantes, sentindo os sabores de sua terra, sabores nunca esquecidos e sempre desejados em todas as vezes que ia aos estabelecimentos comerciais que anunciam tal tipo de cardápio regional e dos quais saía inevitavelmente decepcionado.

Já ela fora mais modesta na quantidade, orientada a ter cautela pelo menos neste primeiro dia.

_Minha filha, vai devagar. Quem não tem costume de comida feita na banha às vezes passa mal, viu?

Para encerrar, doce de leite e queijo Minas, ambos feitos ali mesmo na propriedade e, segundo as palavras da própria visitante, indefectíveis.

Barriga cheia e louça lavada, avó e neto se sentam à sombra das árvores do terreiro para colocar a conversa em dia ao mesmo tempo em que observavam as galinhas, patos e angolas ciscando e os leitões fuçando a terra junto às centenárias raízes. Enquanto isso a moça se fecha no quarto para descansar da viagem e digerir o ótimo almoço e as novidades. Até ali vira muitas coisas que só conhecia das obras de Monteiro Lobato, e isso era só uma fração minúscula do que ainda estava por vir.

Ela não sabia, mas o melhor a fazer agora era mesmo descansar. Ainda teria muitas descobertas pela frente.

Fim da Parte NOVE

terça-feira, 26 de julho de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte OITO


Parte OITO

Tudo é novidade para a garota urbana. O ar puro, os cheiros da natureza e de fazenda, animais soltos, que a dona nomeava genericamente de criação. Estranhou a antiga casa com o piso ora de cinzento cimento, ora de grossas tábuas imperfeitamente assentadas e sem verniz, que rangiam sob seus passos. Andava temerosa de que o salto enfiasse em uma daquelas frestas e se quebrasse, o que seria praticamente uma tragédia. Nesse momento ficou realmente arrependida de não ter dado ouvidos aos conselhos de quem conhece bem o lugar e não ter vindo mais bem preparada, no mínimo calçada com uma rasteirinha.

Naquele instante passou a considerar exagerada a reação que teve enquanto era planejada a viagem. O lugar era pitoresco, um tanto rústico, mas realmente agradável, no mínimo essa seria uma experiência diferente. Nunca estivera no campo, no máximo visitou um pesque pague, mas como diria o namorado, aquilo não passava de roça enlatada, leite de saquinho, ovo de granja.

Só não gostou mesmo do banheiro, muito simples e sem qualquer acabamento, todo de cimento grosso, as louças quase que uma sobre a outra e encimadas por um grande chuveiro de aço inox que devia gastar energia suficiente para tocar uma siderúrgica e era o convite para um choque elétrico quase certo.

O quarto que ocupariam também era bem espartano, uma cama de casal fabricada provavelmente nos anos 60, um guarda roupas nem tão novo assim também de duas portas separadas por quatro gavetas e um espelho oval bisotado, um beliche com colchões de palha duríssimos e uma prateleira cheia de pequenas imagens de santos e marcas de velas que por décadas choraram suas ceras em honra da fé de alguém que ali se ajoelhou e se entregou a demoradas noites de orações.

Finalmente em volta da grossa janela de madeira sem qualquer acabamento além de uma mal passada tinta, estava dependurado um gigantesco rosário formado por contas de madeira maiores do que azeitonas, e muito provavelmente confeccionado com o único propósito de se tornar objeto de decoração.

_Bom, não é tão ruim quanto eu pensei que seria. Se eu não tivesse agido com tamanho preconceito poderia ter evitado muita briga na semana passada. – ela fala ao ouvido do rapaz ao tomar o seu lugar à mesa. Elevando a voz emenda:

_Então vamos conhecer essa tal comida mineira!

Fim da Parte OITO