terça-feira, 2 de agosto de 2011

Trem Bão é Coisa Boa Parte ONZE

Parte ONZE


Acordou sentindo uma angústia inexplicável. Um peso no peito, quase uma falta de ar. Aos poucos ela vai entendendo os sintomas. Longe de casa, num lugar estranho, escuridão e silêncio total. Sente falta dos sons da cidade grande, das luzes intermitentes das viaturas lá embaixo, e ela protegida da violenta realidade por mais de uma dezena de andares, na sua bolha protetora, apartamento hermético que a isola do mundo. Escolhe seus contatos, e os escolhe a dedo. Amigos, amores e até mesmo familiares, só se envolve com quem bem quer.

E agora aquela nova situação se impõe. Fora de seu ambiente tão bem controlado, está na casa de pessoas estranhas que se aproximam e se dão liberdades e intimidades tão naturalmente que a deixam perplexa. Aquilo incomoda profundamente e a primeira noite ali só serviu para aumentar tal sensação.

Consegue se entregar ao sono somente com o início da alvorada, quando um estreito facho de luar se filtra pelas frestas da janela formando um tênue quadrado luminoso na parede antes imperceptível na densa escuridão da noite do campo.

Diante de tal imagem, aos poucos se entrega ao sono novamente e nem percebe o rapaz se levantando com toda a disposição do mundo para encarar o dia que estava começando.

Uma diáfana neblina ainda se despregava do capim no pasto à frente quando o rapaz enfiou a cabeça sob a torneira da pia e sentiu todos os músculos do seu corpo se retesando ao contato da água gelada da cisterna. Se estivesse na cidade, certamente estaria dormindo àquela hora, e acordaria bem mais tarde. Mais duas, três horas de sono ainda, quem sabe?

Mas na roça era impossível permanecer deitado, ainda mais agora que era quando as coisas começavam a acontecer. A estrada que durante o dia ficava praticamente deserta agora se apinhava de trabalhadores indo para as plantações de milho e pimentão, além de algumas carroças levando adultos e ás vezes até mesmo crianças até as capineiras onde passariam o dia cortando a baquearia para alimentar o gado nos cochos.

A avó já havia se levantado fazia tempo. Passou o café com rapadura e lhe serviu uma fatia de queijo bem fresco, recém tirado da fôrma. Ele mesmo foi quem lavou a peça usando para isso um sabugo de milho a fim de retirar o excesso de sal que o cobria, ao mesmo tempo em que era apresentado a Chicão, o caseiro que iria acompanhar até o curral para assistir à ordenha de uma meia dúzia de vacas daquelas bem ordinárias que nem perto passam das campeãs de produção leiteira que estava acostumado a ver nas exposições de gado, mas que eram mais que suficientes para a fabricação dos queijos que ajudavam a complementar a magra pensão com que a proprietária administrava o terreno.

Juntamente com Barranco, ele acompanha Chicão que leva um pedaço de corda, um balde e um pequeno banco, os instrumentos necessários para a conclusão da tarefa. Nas suas próprias mãos vai uma caneca de zinco esmaltado e que pelas marcas de descascado que ostenta, está ali desde sua infância.

Ao contrário das grandes fazendas nas quais o processo se dá de forma totalmente mecanizada, naquela propriedade tudo acontece da maneira tradicional. O caseiro amarra as patas traseiras da vaca e enquanto se senta no banquinho posiciona o balde e começa o trabalho de ordenha manual. É mais demorado e menos eficiente, mas de que outra maneira ele conseguiria encher a caneca com leite quente tirado na hora, e ainda rir frouxamente lembrando do bigode formado pela espuma, igualzinho ao que fazia quando era ainda um meninote?

Graças à habilidade de Chicão rapidamente se tem pouco mais de meia lata de leite, que é levada até a varanda dos fundos da casa, onde se adiciona o coalho para o início do processo de fabricação dos queijos que no final de semana serão comercializados no armazém do povoado ali perto.

Agora os dois vão tocando o pequeno rebanho estrada a fora acompanhados pelo fiel Barranco ao local onde as vacas permanecerão pastando até à tardinha, quando Chicão fará o trajeto inverso e trará o gado para dormir no curral próximo à casa. Para o caseiro, a caminhada que dura cerca de meia hora é um trabalho corriqueiro, já para o jovem investidor é uma verdadeira aventura cheia de sobressaltos, com direito até mesmo de correr no mato em meio a pontiagudos espinheiros no encalço desta ou daquela novilha desgarrada.

Já são dez horas, minha filha! Exclama a senhora ao encontrar com a garota no meio da sala, e nem pôde conter o riso ao perceber que a visitante vestia um longo roupão rosa claro e trazia nas mãos uma bolsa transparente com dezenas de produtos de beleza e higiene, além de no mínimo, umas três toalhas.

-Pra que tudo isso meu Deus? No meu tempo a gente se virava com uma barra de sabão de coco e saco de açúcar. E eu que achei que tava moderna demais comprando sabonete cheiroso e agora vejo você parecendo prateleira de botica! Se ta com isso tudo pra ficar aqui na roça quero nem ver quando for casar com o meu neto! Hahahahahaha!

E rindo com vontade, deixou a garota ir para o banho com um tímido – A gente precisa estar preparada para tudo, não é mesmo?

Agora que estava de banho tomado e energias renovadas, se junta à anfitriã que amarrava um feixe de plantas ao lado de uma curiosa construção abobadada erigida a um canto do quintal.

Ao perceber sua chegada a dona de casa lhe sorri e pergunta se poderia fazer um favor, momento no qual pensa muito a contragosto, que além de estar onde não queria conseguiu até mesmo arrumar um serviço para fazer. –Aff, deveria ter ficado no quarto lendo o livro como fiz ontem... Que será que será que vai me sobrar agora?

-Pega essa vassourinha e passa ela no forno, por favor?

Bom, isso ela poderia fazer. Mas olhou em volta e não viu nem vassoura nem forno.

Percebendo o embaraço, a velha aponta o feixe de ramos que acabara de atar e a estrutura arredondada feita de tijolos aparentes e entendeu tudo. Ficou admirada com o aroma que as folhas emanavam enquanto limpava as cinzas e pedaços de carvão de dentro do forno a lenha, e soube que os ramos eram de alecrim, mas não aquele de supermercado, tempero de vidrinho. Era alecrim do mato. Tempero de verdade mesmo. E não é que era mesmo bom?

Olhou um pouco preocupada para o relógio, pois já sentia os primeiros sinais de fome e perguntou se a preparação do tal forno seria para o almoço.

-Né não, menina. O almoço já ta é pronto, sopa de mulher parida que eu fiz enquanto você ainda dormia. Dizendo isso, apontou para cima e ela pôde ver os rolos de fumaça se desprendendo da chaminé da cozinha e flutuando até se desfazerem na brisa da manhã que se acabava. O forno é para as quitandas, afinal, hoje é terça-feira, dia de rezar o terço e hoje vai ser aqui em casa.

Ela já havia ouvido sobre as famosas quitandas mineiras, mas essa tal sopa de mulher parida? –Sei lá se vou comer isso não, ainda bem que trouxe umas barras de cereal – pensa enquanto tenta imaginar que prato bizarro seria este que lhe seria apresentado à hora do almoço.

-Bora almoçar, Chicão.

-Vou não, patrão, tenho que ficar aqui na Capoeira pra curar a criação e quem sabe pegar um ou dois preás pra comer tomando uma guia mais tarde, né? Além disso, to com a marmita que a dona fez, se voltar com ela cheia arrumo problema certo.

-Só você mesmo! Então vou chegando que se ficar aqui mais dez minutos vou ter que cair ali no pasto e comer capim junto com as vacas.

Passa a tronqueira que separa o terreno da família da estrada de terra e começa a caminhada até a sede cerca de três quilômetros serra abaixo, mas não sem antes parar para colher algumas laranjas campistas que nasciam naturalmente ali no pasto. Mais uma doce lembrança de sua infância. Doce mesmo. Ao observar a árvore nota que os frutos mais altos estão bicados pelos pássaros, sinal de que as laranjas estão deliciosamente maduras e no ponto exato de se colher.

Descendo a sinuosa estrada vai lembrando de quando subia acompanhando o pai e o avô, ora correndo para tentar acompanhar os largos passos dos adultos, ora sentado atrás do carro de bois que ia rangendo as grandes rodas de madeira enquanto ficava riscando com a varinha de bambu o chão que corria para trás sob seus pés ouvindo o condutor chamando os bois carreiros e bater a vara de ferrão na cangalha: Eia Apache! Eia Cigano!

Absorto em tais pensamentos nem percebeu que já saltava o último dos mata-burros e conseguia avistar no alto da pequena colina depois da curva a aconchegante casinha de pau a pique. Ao ver a fumarola se elevando do telhado da cozinha sentiu a boca se encher de água e apertou o passo.

-Hoje eu como até ficar triste!

Ele quase nem acreditou quando entrou na cozinha com o prato na mão. Na panela de ferro borbulhava o caldo da galinha, feita em sua própria gordura, o que dá um sabor todo especial. Em outra, o quiabo sequinho, que só quem tem grande experiência na cozinha mineira consegue fazer. Forra o prato fundo com farinha de milho e deita o caldo, não sem antes pescar o coração, lembrando de uma traquinagem de criança, quando ele e os primos disputavam tal guloseima praticamente a tapas.

Enquanto isso a avó explica à moça que o prato se chama sopa de mulher parida porque antigamente era preparado para as mulheres que davam a luz, de forma a lhes dar força e resistência e se recuperarem após o trabalho de parto.

O rapaz enche a colher com gosto e vontade – Nem lembro quantos anos fazem que eu não como uma comida mineira de verdade. Já estava enjoado dos magros caldos temperados na base de pozinhos e tabletes. Faltou só o ora pro nobis, que seria um acompanhamento perfeito, mas este foi prometido para a próxima visita.

A garota, que não gostou do prato já ao ouvir o nome ficou surpreendida com o sabor e textura. Comeu e repetiu. Além disso, prometeu se aprofundar na história da culinária da região e seus nomes peculiares. –Já que estou aqui, melhor mergulhar na tradição. Se estou em Roma...

Para a idosa, não teve noticia melhor. Adorava falar das historias e estórias locais, lendas e folclores, e agora ganhou uma ávida ouvinte, curiosa pra absorver toda aquela prosa matuta. Enquanto tirava fornadas de biscoito e bolos de fubá com queijo, falava sobre a misteriosa luz que aparece por ali às margens da estrada e que acompanha os incautos pedestres que caminham sozinhos pela noite. Ela mesma nunca viu, mas já deu abrigo a apavorados transeuntes que juram ter sido perseguidos pela fantasmagórica chama, especialmente durante a semana santa. A garota se divertia com a narrativa, cheia de gestos e sons que davam ainda mais ênfase ao conto e quase sem perceber, foi abrindo a guarda ante a simpatia contagiante da simples anfitriã.

A tarde correu rápida e a mesa estava farta com os biscoitos de queijo e canela, além de diversos bolos, café de rapadura e leite caramelado, tudo isso para receber as comadres e os compadres no ritual semanal de rezar o Rosário, tradição e cultura que permanece arraigada profundamente entre os moradores do povoado.

Com o cair da noite, a casa vai se enchendo e o papo fica alegre com os causos que todos contavam, até que começa o momento da oração em que a fé se sobrepõe à confraternização e se entregam às contas dos terços elevando as vozes em uma ladainha monótona, quase um mantra, quando parecem entrar em um estado de hipnose e nada mais importa além de cantar as orações ritmicamente.

Encerrado o rosário, novamente a casa se ilumina de vozes e começa o banquete. Alguém levou um caldo de feijão e outro um de mandioca. Chicão chama o rapaz e lhe apresenta a cachaça que fabrica no pequeno alambique que tem no terreiro de casa. Mais alguns homens se juntam e formam uma pequena rodinha de degustação, tirando gosto com caldo e torresmo. Não gasta muito tempo e ele já está embriagado pela forte bebida, desacostumado e até um pouco empolgado foi um pouco além da conta e do limite. Nesse instante percebe o olhar de desaprovação da companheira, larga os companheiros de copo e a abraça pela cintura.

-É melhor dar uma maneirada, sei que está se encontrando com suas raízes, mas não significa que precisa me deixar envergonhada.

Assim como foram chegando, os participantes se retiram e a casa volta à sua calma costumeira. Desacostumada a deitar tarde, a dona se arrasta para a cama e o casal também se recolhe. Excitada com o dia cheio de acontecimentos e novidades, a garota começa a falar sobre as descobertas, o forno e as quitandas, os causos que ouviu e a simpatia que começava a nutrir pelo povo simples do lugar, a comida tradicional e os temperos colhidos ali mesmo, bastando somente dar uns poucos passos até a hortinha que era cultivada no quintal, com pimentas, hortelã, cebolinha e manjericão, além de outras ervas aromáticas.

Tão empolgada que estava, nem percebeu que ao invés de ouvi-la, o rapaz havia dormido assim que tocou os travesseiros. Embalado pelas atividades do dia e pelas cachaças da noite, já sonhava com o verde capim dos pastos e o marrom avermelhado dos cupinzeiros que cresciam aqui e acolá entre as trilhas pisadas pelas vacas no pasto.


Fim da Parte ONZE

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